Julián Fuks

Julián Fuks

Siga nas redes
Só para assinantesAssine UOL
Opinião

Para que serve a psicanálise? Sobre a busca por um sentido inacessível

Por que alguém se encerra numa sala com um desconhecido, deita-se e extravia o olhar no vazio, põe-se a contar seus conflitos íntimos, suas memórias de infância, seus sonhos estranhos, as minúcias de sua vida? O que ganha com essa exploração verbal de si que poderia se estender até o fim de seus dias, com essa busca incurável por uma cura imprecisa, com essa perseguição obsessiva de alguma ideia mais clara, uma revelação, uma certeza, uma palavra ainda não dita? A psicanálise não se cansa de teorizar a si mesma, renovando a cada vez suas respostas a essas perguntas, e no entanto algum mistério permanece, seu sentido se mantém complexo, instável, esquivo.

Isso que digo parte de um não saber, de um ouvir dizer, das memórias de infância como filho de psicanalistas, e dos anos que passei semana a semana atirado num divã, entregue a indagações, reminiscências, devaneios. Não sei que palavras buscava sobre mim mesmo, sobre meu corpo e minha língua, minhas ambições e meus desejos, minhas relações afetivas, minhas noites e meus dias. Nunca me vi diante de um sintoma específico, nunca quis me livrar de algo que achasse estranho a mim, e ainda assim me vi transformado em cada experiência analítica, sem saber como ou por quê. Nunca julguei que aquilo fosse imprescindível, e ainda assim o sentia como valioso e único, como um generoso bem que me era oferecido.

Pensava um tanto sobre isso enquanto traduzia um livro valioso e único, "Conversa infinita", em que o argentino Mariano Horenstein entrevista alguns dos maiores artistas, escritores e filósofos de nosso tempo, com foco em suas experiências analíticas. O que se lê, nas palavras de improviso de Marina Abramović, Alain Badiou, Jorge Drexler, Anish Kapoor, Caetano Veloso, Julia Kristeva, entre outros, não são conceituações precisas, e sim impressões, interrogações, hipóteses dubitativas. São, em alguma medida, a própria matéria de que se faz uma análise, a linguagem em estado de suspeição, servindo a fins ainda indefinidos.

Contar para si a sua própria história até que ela se torne mais habitável, é esse o valor maior que a escritora Siri Hustvedt enxerga no processo analítico. Ir desvendando os padrões inconscientes que se repetem e vão produzindo infelicidade, e então, a partir do desvendamento, sentir que se produz uma curiosa libertação, quase incompreensível. O espanhol Javier Cercas faz leitura parecida: diz que ali pode dizer enfim coisas que pareciam indizíveis, e assim o que era turvo se esclarece, o que era aterrorizante ganha tons mais amenos. É certo que não precisa haver na psicanálise um sentido de apaziguamento, mas não é tão raro que esse seja um de seus efeitos, é o que concluímos.

Drexler toma um caminho próprio, mais metafórico, valendo-se de seu mundo de músico para alcançar a imagem que o define. Durante um tempo ia a cada consulta como um instrumento que devia ser afinado, um violão que soasse estridente e ali obtivesse sua afinação exata. Depois de uns dias precisava voltar, suas cordas estavam soltas de novo, era preciso ajustá-las, e o efeito se repetia. Kristeva encontra uma explicação que talvez sirva tanto para si quanto para Drexler. "A criatividade humana é singular, e esse é o objetivo da análise: dar a cada um sua singularidade." É uma das vias de fuga de uma cultura tomada pelo banal, por padrões de pensamento que tudo igualam, tudo esvaziam. Ela é incisiva: é claro que cada sessão pode estar povoada por coisas triviais e repetidas, "mas até que não se encontra o incomparável de cada um, não se faz uma análise".

"É a melhor conversa da minha vida. Por isso eu vou, não porque esteja particularmente louco e precise de conserto." Isso quem diz é o escritor britânico Hanif Kureishi, talvez em desacordo com Drexler, mas numa visão que também traz a sua beleza. Destaca o que há de peculiar nesse enquadramento, isso que também me intriga desde que eu era criança e apenas ouvia falar a respeito. Que duas pessoas se encontrem com regularidade numa sala, às vezes ao longo de décadas, apenas para trocar palavras sobre a existência, ou até sobre coisas mais estúpidas — sendo a estupidez a essência da obra, tal como Kureishi a descreve. Uma ideia absurda, e no entanto extraordinária, que ele vê cada vez mais bela à medida que envelhece.

As respostas dessas muitas vozes inteligentes nada encerram, nada circunscrevem. Mas não há problema porque nisso se assemelham à psicanálise, que ainda que se guie por alguma interrogação fundante, algum enigma, nunca almeja à sua resposta definitiva, à palavra final que já se sabe inexistente. Perde assim o tal caráter de conversa agradável, torna-se incômoda, inquietante, pode suscitar antipatia. Mas obriga o sujeito a um movimento importante, obriga ao confronto com os próprios pensamentos, com as palavras e seus sentidos esquivos que são quase tudo o que temos. Nisso psicanálise e literatura se parecem: na certeza de que vale continuar tentando definir o mundo e a nós mesmos, ainda que falhemos, ainda que o mundo e nós resistamos sempre ao que dizemos.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

Deixe seu comentário

O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.