A morte e sua cadeia infinita de desamparos
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A morte produz uma cadeia infinita de desamparos. Vai se perdendo o domínio sobre a própria voz, os próprios olhos, os próprios órgãos, a própria imagem, sobre a ideia que alguém faz de nós. Nisso ao menos há uma vantagem: a morte não termina nunca.
O amigo de um amigo entrou num bar. Eu não estava lá, mas ouvi a história diretamente do amigo do meu amigo, atentei às sutis inflexões de sua voz, pude notar a franqueza em suas feições, por isso decidi confiar. Confio porque o mundo se multiplica quando confiamos, porque a vida se faz mais real se acreditamos nas histórias dos outros, se a elas nos entregamos como se fosse a nossa história.
O amigo de um amigo entrou num bar, sentou-se para comer um prato feito, como não fazia há muitos anos. Enquanto esperava, viu que um homem chegava um tanto trôpego e abria caminho até o balcão. Embora grisalho agora, parecia ter sido loiro aquele homem no passado, assim como é loiro o amigo do amigo, parecia ter os seus mesmos olhos claros. Foi o primeiro pensamento que lhe ocorreu ante a aparição: esse homem se parece comigo, esse posso ser eu no futuro.
O homem alcançou o balcão, entregou o peito ao parapeito fazendo jus a tal nome, apoiou a cabeça na superfície fria de fórmica e estirou o braço ao máximo. Ao seu lado havia uma travesti, foi isso o que disse o amigo do amigo, definindo a nova personagem apenas com tal palavra, ao lado do homem havia uma travesti que se assustou com sua chegada. Foi o segundo pensamento do amigo do amigo, seu último pensamento antes que a coisa toda se precipitasse: o homem velho e trôpego está tentando apalpar a travesti, em pleno almoço de quarta.
Apressou-se o dono do bar em impedir que ele o fizesse. Ordenou que se recompusesse, que aquela não era uma pose digna para um bar. O homem tentou se erguer, tentou tossir, acabou desabando de costas no chão, começou a convulsionar. Agora era grande o alarde da travesti, do dono do bar, de um e outro que passavam pela calçada nessa hora. Todos alternavam o olhar ora para o homem que morria, ora para o amigo do amigo que conta a história: ele parecia alguém capaz, exigiam que fizesse algo, uma massagem cardíaca, um chamado por socorro, algo.
O amigo do amigo ficou ali paralisado. Nada sabe de medicina, não teria como cuidar do homem. Não tinha sequer um celular: está voltando à cidade depois de 12 anos no Uruguai, por isso há tempos não entrava num bar como aquele, não comia um prato feito. Ficou ali paralisado, pensando no azar do homem que só contava com ele para salvá-lo, pensando que a última coisa que alguém pensara sobre o homem antes da morte era que estivesse tentando apalpar uma travesti, em pleno almoço de quarta. A morte veio no fim das convulsões. Morreu, disse um, morreu, disse outra, e por alguns segundos ninguém mais disse nada.
A morte produz uma cadeia infinita de desamparos. O amigo do amigo ficou olhando o homem morto, cogitando de novo se aquele seria ele no futuro, repassando na memória os doze anos no Uruguai, as quatro décadas anteriores, revisando se teria algo a lamentar se aquele fosse seu destino tempos depois. Pensando no azar do outro e em seu próprio azar: o outro morreu em desamparo, sozinho entre estranhos, sem ninguém que o conhecesse ao redor, entregando também sua versão mais jovem a pensamentos de morte e solidão.
Entro eu também nessa cadeia de azares, ampliando o desamparo dos dois. Que outro destino teria alcançado esse homem se sua morte fosse parar nas mãos de outro autor, digamos um Dalton Trevisan que lhe desse a secura necessária, o susto, a precisão. Digamos algum escritor mais livre e imaginoso, que inventasse para ele um passado, que completasse as lacunas de sua vida com um nome, uma origem, um amor. Seu derradeiro azar foi cair nas mãos deste autor, que não pôde mais que adensar o vazio de sua morte, que não saberá lhe dar a necessária palavra final.





























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