O personagem mais lamentável de Lygia Fagundes Telles

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Hoje quero falar sobre um sujeito esquivo, circunspeto, incompreendido. Um sujeito que, apesar de toda a distância, toda a diferença, parece me encarnar de alguma maneira, parece dizer coisas inesperadas sobre a minha vida. Alguém que acabo de descobrir e que, no entanto, me habita despercebido há anos, fundindo tempos e mundos dentro de mim. Como acontece com os bons personagens da literatura, sim, mas esse não é bom. Quero falar sobre o personagem mais lamentável de Lygia Fagundes Telles.
Por um tempo cultivei o intenso propósito de escrever uma biografia de Lygia, convém dizer. Já contei uma vez essa história, acreditando ter alcançado o seu fim, o desfecho inevitável que vem com a morte. Tinha pouco mais de vinte anos de idade, e aquela mistura de presunção e timidez que pode acometer os muito jovens. Sentia uma admiração imensa por essa mulher, e me pus a ler com avidez sua vasta obra, livro após livro que me surpreendiam, me encantavam. Queria escrever um livro próprio que a encarnasse de alguma maneira, uma biografia lírica em que vida e pensamento e ficção se fundissem, sem espaço para detalhes vãos ou pequenezas frívolas. Um dia então lhe confessei uma vaga intenção e fui bater à sua porta.
Ela me recebeu com um sorriso largo, o braço estendido me abrindo passagem, a simpatia que lhe era um atributo inescapável. Sentou-me numa poltrona acolchoada, me ofereceu um café que recusei porque não tomo, me ofereceu em troca um vinho do Porto. Pôs-se então a contar uma infinidade de histórias que eu já lera em suas páginas, e outras que conhecera em jornais, histórias que ela encadeava com algum automatismo e ainda assim preservavam seu frescor, soavam belas, nitidamente misteriosas. Falou da infância, dos primeiros escritos, dos tempos da faculdade, depois disso de uma profusão de personagens que a visitavam, que despontavam na bruma da tarde e exigiam ser narrados, imploravam por virar palavra. Lembro ter sentido veraz essa sua maneira de mistificar a escrita, lembro que ainda me via encantado.
Saí dali e dei continuidade à leitura, à pesquisa, agendei entrevistas com parentes e familiares. Na bruma de uma tarde, porém, despontou a voz de um assessor que até então não dera as caras. Lygia não deseja uma biografia, ele disse, tinha entendido mal o meu propósito, achava que seria um trabalho menor de faculdade. Pedia com calidez que eu parasse de imediato, que já não investigasse sua vida, que respeitasse os direitos de sua personalidade. Devo ter guardado alguns segundos de silêncio, era difícil me desfazer de um texto cujos contornos eu já vislumbrava, mas não podia senão aceitar. Foi a única vez na vida que chorei na análise, lamentando o projeto abandonado. E a razão por que decidi a partir dali só trabalhar com autores mortos.
O primeiro desfecho dessa história é redentor e solar. Três anos se passaram, eu estava prestes a publicar meu livro sobre autores cegos, todos mortos, e a revista Entrelivros me convidou para entrevistar e escrever um perfil de Lygia. Eu já não era tão jovem, e parecia sábio encarar a proposta com abertura em vez de mágoa. Voltei àquela casa, recusei o café, aceitei o vinho do Porto, e a entrevista resultou quase idêntica à anterior, embora o discurso de Lygia já se mostrasse mais fragmentário, quase caótico. Não tive certeza de que ela se lembrasse do outro encontro. Não importava: me esmerei na edição da entrevista, escrevi um perfil eloquente e carinhoso daquela mulher inesgotável. E a redenção veio com a publicação, com sua acolhida entusiasmada, seu agradecimento enfático a apagar todo rastro do desencontro passado.
Pensei que aí terminasse a história, mas havia ainda um personagem a encontrar, o leitor já sabe. Quem me alertou para o conto que me escapara foi Raquel Cozer, que está escrevendo agora a biografia de Lygia, com a sabedoria de ter esperado a sua morte. Vá ler "O visitante", ela me disse, um texto entre a ficção e o testemunho que Lygia publicou em seu último livro, "Conspiração de nuvens". Suponho que seja do seu agrado, ela emendou, mas não vá chorar de novo.
"O jovem visitante estava interessado em fazer a minha biografia e precisava de algumas informações. Instintivamente recuei e fechei a gola do suéter, biografia?! Pretendia revelar, dentre outras coisas, aquelas que deviam ficar escondidas, era isso? Expor justo aquele retrato que permanecia oculto lá no fundo das cavernas?" Assim começa o conto de Lygia, a história de um sujeito circunspeto que irrompe em sua casa decidido a devassar a sua vida. Aceita não só um café, mas dois, especificando que não exagere no açúcar. E a interroga com palavras escassas, com um olhar inquisitivo, atenciosamente irônico, é como a narradora o descreve.
Porque não quer expor a sua vida, porque não se interessa nem por biografias alheias, que dirá pela sua, é que Lygia prefere se entregar a devaneios. Conversa com o visitante sobre assuntos dispersos, fala sobre Empédocles e a transmigração das almas, sobre Machado e os narradores não confiáveis, fala sobre um relógio que viu em Paris com a inscrição "conto somente as horas felizes". Pergunta a si mesma se o jovem não poderia acatar o mesmo princípio do relógio, "uma biografia luminosa, só amenidades", que tal? Como não pergunta a ele, não pode ouvir que sim, que é bem isso o que ele deseja fazer. Não são almas tão distantes, poderiam se entender se dissessem as palavras certas, mas um está mudo e a outra perdida em devaneios.
Depois ela fala sobre as personagens que a visitam, que imploram, exigem, nisso suas memórias coincidem perfeitamente. Fala das vozes que despontam na bruma da tarde, vozes que retornam com insistência pedindo mais uma chance porque não disseram e não fizeram nem a metade do que deviam fazer. Ela se compadece dessas vozes estridentes, só não se compadece do jovem esquivo que tem diante de si. De repente, o texto já quase termina, em grande injustiça, ela tem "a nítida intuição que o visitante nunca leu os livros por onde aquela gente transitou". E sente alívio quando ele parte, porque sabe que os outros irão insistir, irão voltar, mas não ele.
A esta altura não há confissão, mas posso admitir: sou eu o personagem mais lamentável de Lygia Fagundes Telles. Só não parti de vez, sinto dizer. Voltei, Lygia, naquela outra brumosa tarde que passamos juntos, aquela tarde em que trocamos papéis e eu escrevi e você não escreveu. E voltei ainda agora enquanto lia o seu conto sobre mim, sentindo que nunca mais poderei sair daquela sala, que continuo a bebericar o que você me serviu, seja café ou vinho do Porto. Que sou esse sujeito um tanto patético que um dia cogitou explorar em palavras a sua vida, e que, talvez para a sorte de ambos, você conteve a tempo. É estranho voltar à cena, é estranho o que se passa com a minha voz, agora que me sei personagem seu e não quero que minhas palavras implorem nada, exijam nada. Quero só respeitar os direitos de sua personalidade, e o silêncio de sua morte.





























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