Em defesa do devaneio, abafado pelo discurso incessante do mundo
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Da mente dos outros se sabe pouco, não há lá maneira segura de descobrir o que pensa o outro em sua solidão, no mais extremo isolamento. Só o que se pode fazer é especular a respeito, deduzir a partir de alguns indícios, aventar hipóteses sempre um tanto inconsistentes — é o que fazem a literatura, a psicologia, até a neurologia talvez. Arrisco então um palpite não verificável: que, num mundo saturado de informações aleatórias, num mundo continuamente abastecido de palavras e imagens alheias, num mundo carente de silêncio, definha uma parte importante da interioridade, perde-se o hábito frequente do devaneio.
É esse livre extraviar do pensamento, é essa fantasia desmedida e autêntica, o que fica sem lugar quando abarrotamos de dados o nosso cotidiano, quando ocupamos cada instante de espera e sossego com mensagens, textos, áudios, vídeos, com o burburinho incessante que o celular nos apresenta. É como se já não tolerássemos nenhum vazio, como se o vazio nos atormentasse mais que o mundo em desordem, e por isso dele fugíssemos com uma densidade de discursos jamais experimentada em outro tempo. Fugimos da vaguidão dos nossos próprios pensamentos, como se já não nos interessasse ouvi-los, como se eles tivessem perdido a capacidade de nos surpreender, nos cativar, nos revelar, nos entreter.
Leio num texto de Freud que o devaneio é a expressão adulta da brincadeira, é "uma formação substituta, ou um sucedâneo". Que o indivíduo em crescimento para de brincar, aposenta os seus brinquedos indiscretos parecendo renunciar a esse prazer, mas, como não aceita de todo perdê-lo, passa a se dedicar a uma prática mais secreta, inconfessa: "em vez de brincar, ele fantasia". Brincar e fantasiar são atividades essenciais, à criança e ao adulto, são a um só tempo uma ação criativa e um rearranjo do mundo, num íntimo trato com o próprio desejo. Se impedimos que a criança se perca em telas para que não se furte à brincadeira, o mesmo deveríamos fazer entre adultos: conter o uso do celular para que ninguém se prive de devaneios.
Freud destaca também a relação da fantasia com o tempo. Diz que ela paira entre três tempos: parte de uma impressão atual que desperta um desejo, retorna a um passado onde já o viu realizado, imagina então um futuro em que se realize mais uma vez. "Passado, presente e futuro são como que perfilados na linha do desejo que os atravessa", ele sintetiza. Pensemos então essa existência contemporânea que afoga todo devaneio antes de sua ocorrência, que o substitui de imediato por outra informação qualquer. Não há espaço para a reminiscência, não há projeção de um porvir, o sujeito se vê preso num presente perpétuo — um presente raso a ponto de quase não deixar memória quando enfim seu fluxo se encerra.
De novo só me é dado especular, mas imagino que não seja infrequente nos outros, como não é em mim, levantar os olhos da tela guardando pouca noção do que lhes cabe fazer em seguida, alienados de sua época apesar de tanto saberem sobre ela, desnorteados de sua própria existência. Talvez seja justamente esse o objetivo de tanta distração, de tanta dissipação do pensamento, deixar de encarar um futuro que não se mostra tão auspicioso quanto se desejaria, nem para cada um nem numa vida coletiva.
Mas, eis aí a contradição, eis o paradoxo, era bem para conceber esse improvável futuro feliz que nos valíamos da fantasia: "Desejos insatisfeitos são as forças motrizes das fantasias", afirma Freud, "e cada fantasia é uma realização de desejo, uma correção da realidade insatisfatória". E então poderíamos cogitar, nesse longo curso de um pensamento, se essa insatisfação irredimível que tantos têm vivido, esse vasto descontentamento que por vezes leva às escolhas mais destrutivas, não será em alguma medida consequência do déficit de devaneios, da escassez de fantasias.
E então não cabe encerrar com pessimismo este devaneio ordenado em forma de texto. Talvez me valha mais ir buscar no passado um tempo de maior prazer e com ele fundar o futuro que vislumbro, o futuro que desejo. Se há tantos séculos, tantos milênios, vivemos imersos em fantasia, como dá prova a existência longeva da literatura, não cabe pensar que agora a fantasia vá se dissipar de vez, que já não encontremos lugar para ela. Há de haver devaneios de resistência, nas frestas da informação incessante, nos instantes ainda que breves de silêncio, no olhar que se estira pela janela em busca de algum horizonte, e é neles que se revelará a mudança necessária, a urgência de um pensamento livre, distante de tanto ruído.
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