O sorriso desaparecido de Rubem Braga
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Desconfiado de sua palavra, senti uma súbita urgência de ver o rosto do jovem Braga. Queria saber se ele mentia numa crônica, se mentia quanto à existência de uma tal Pierina, uma vizinha com quem ele travou na juventude um amor através das janelas, por sinais e gestos, e a quem lançou um avião de papel que foi dar bem em seus seios, num voo perfeito. Algo na crônica sugeria que aquilo só podia ser uma ficção deslavada, embora tão singela. Como precária conferência, me ocorreu que devia ver o rosto do Braga garoto: para viver algo assim ele tinha que ser ao menos um pouco atraente.
O que descobri, porém, se revelou muito mais transcendente do que a verdade ou a mentira da crônica, assunto estúpido de qualquer maneira. Vasculhei todas as imagens que pude, das remotas às recentes, vi o cronista em sua casa, na praia, na guerra, o cronista solitário ou cercado de amigos, o cronista através do espelho, vasculhei todas as imagens que pude tomado de uma estranha vertigem, e não vi sorriso em parte alguma, nem um mísero relance de seus dentes. Em todas as fotos o mesmo semblante severo, contrafeito, furibundo até. Ao que parece, Rubem Braga não sorria. Se acreditamos nos registros de sua época, não é impossível alegar que nunca sorriu.
Aquilo me intrigou numa parte profunda de mim, aquilo me indignou e me enterneceu a um só tempo. Era estranho, era injusto que um homem como esse não tivesse o hábito frequente de sorrir, se tanta beleza e tanta ternura via no mundo, e se conseguia traduzi-las em palavras perfeitas para todo tipo de contentamento. Não devo ser apenas eu, pensei, a percorrer as páginas de seus livros com um tremor sempre iminente nos lábios, sem saber se sorrio ou se choro, ou se lanço nos ares algum grito vulgar: esse cara é foda! Então como, agora, me via a lamentar que ele não tivesse sido tão feliz quanto eu pensava, que a melancolia de que tantas vezes falava não pudesse ser vencida pela força de suas palavras, a ponto de suscitar algum sorriso em si próprio?
Me ocorreu que talvez não devesse acreditar nas fotos, que as fotos mentem ainda mais do que as crônicas, e que portanto era mais confiável procurar sorrisos em seus textos. Fui atrás de crônicas que lembrava como joviais, leves, expressões da graça do mundo e do gozo da existência. Voltei a topar com duas meninas que brincavam à beira do mar vestidas de azul e de verde, e deixavam que a espuma molhasse suas roupas, e riam muito, "e isso era alegre e tinha uma beleza ingênua e imprevista". Braga até diz que sorriu por um instante, mas é difícil acreditar nele porque o resto do texto fala apenas de tristeza, "da grossa tristeza da vida, com seu gosto de solidão", de uma angústia dolorosa que só por um instante se faz leve, à vista fugaz das meninas.
E fui parar também em sua famigerada aula de inglês, a mais sutil e cômica aula de inglês de toda a literatura universal que eu conheça, e descobri que não, nem ali ele sorri quando enfim acerta a resposta que a professora deseja, limitando-se ao susto por sua reação, e ao orgulho, e à vergonha. Mas não deixa de provar que conhece bem a mecânica de um sorriso, ao descrever como a professora "teve o rosto completamente iluminado por uma onda de alegria", "e um largo sorriso desabrochou rapidamente, nos lábios havia pouco franzidos pela meditação triste e inquieta". Concluí que Braga conhecia bem o sorriso, é claro, só não queria exercê-lo.
Então fiquei me perguntando se Braga não teria afinal algo de clown, se precisava sofrer para que outros se divertissem, se encantassem, se comovessem. Se cultivou por toda a vida uma angústia que se tornasse fonte de escrita, para alcançar alguma cumplicidade com outras almas partidas, doloridas como a sua. Por isso seu ideal seria escrever, como ele confessou no jornal um dia, "para aquela moça que está doente naquela casa cinzenta", moça reclusa e enlutada, escrever para ela a história mais engraçada que já existiu para quem sabe assim animá-la, para que ela risse e todos à sua volta se espantassem ao vê-la tão alegre.
E me ocorreu, por fim, que talvez também eu pudesse almejar utopicamente a algo parecido, embora nunca tenha me atrevido a nenhuma crônica engraçada, e embora não acredite em qualquer escrita que faça despertar os mortos, dessa forma literal e imediata, um tanto sinistra. Mas que meu ideal de escrita, ao menos neste dia, seria escrever uma pequena e singela crônica que, anacronicamente, pudesse fazer o velho Braga trair sua severidade e sorrir, mesmo que preferisse esconder o sorriso sob o bigode no instante seguinte.
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