Viagem ao interior de mim mesmo, única forma verdadeira de turismo
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Passeio por uma cidade antiga, quase tão velha no tempo quanto na minha própria estima. Vivi nela por um ano há mais de uma década, suas esquinas agora me resultam estranhas e íntimas. Caminho a passo lento, levo debaixo do braço um vinho que vou bebericando discretamente, deixo que as pernas definam o trajeto à revelia da consciência. Sei, em todo caso, que faço a forma mais narcísica de turismo, que procuro a mim mesmo refletido na cidade que vejo. A cidade em si desaparece, suas formas perdem o contorno, suas cores esmaecem. Busco, sem saber se quero encontrar, o homem que fui em outra época.
Assomo à porta de um restaurante onde costumava comer raclette. Está em tudo idêntico, esta é uma cidade de permanências, vasculho as mesas como se nelas pudesse avistar, por mero acaso, os amigos de outra década. O garçom se aproxima e fala comigo em italiano, e eu me desnorteio porque não estamos na Itália. Reparo que em quase todas as mesas se fala italiano, o restaurante está apinhado de italianos, de súbito toca uma música de Laura Pausini e todos cantam entusiasmados. Percebo com nitidez que já não pertenço a esse espaço; percebo mais, que nunca pertenci àquele espaço. Lanço um aceno sutil ao garçom, um pedido de desculpas pela intromissão, e sigo meus passos rua afora.
Vinte, trinta minutos adiante, paro para sentar na bela Place des Vosges. Não sigo um impulso próprio, era minha companheira quem tomava por favorito esse lugar. Faço nesse instante um turismo de empréstimo, me invisto de sua curiosidade. Ou sou eu que empresto os olhos para que ela veja os pinheiros que lhe faziam sombra, os casarões que lhe agradavam. Começo a sentir algum relance de saudade, não da cidade, mas dela, embora faça só três dias que não a vejo, embora tenhamos nos falado há poucas horas. Na esquina vejo a fachada da casa de Victor Hugo, onde descobrimos um pouco chocados que ele escrevia de pé, em sua mesa elevada à altura do peito. Sinto que devo me erguer para continuar a escrever em pensamento.
Já é tarde, em minha terra teria escurecido há horas, mas aqui no norte o sol só aceita se pôr depois do jantar. Me deparo com esse fato quando estou cruzando a Pont Marie, aquela que Marília Garcia tratou de captar em imagens-palavras num longo poema, a ponte sob a luz mutável de seu olhar. Tiro uma foto do sol incidindo sobre a Pont Marie, outra foto do sol tal como visto da Pont Marie, e penso em enviá-las para a amiga poeta, sem saber ao certo que sentido terão para ela. Envio mesmo assim: a insensatez há de ter sempre mais graça que o comedimento.
Na Île Saint-Louis, flagro enfim o que tentava flagrar: uma cena indubitável do passado. Tudo é a reprodução precisa do que guardo na memória: entre as lojinhas multicores, o pequeno bistrô em que costumávamos almoçar, o mesmo cardápio anotado a giz numa lousa, só os preços mais altos. O dono e gerente e garçom continua a servir seus clientes de cara fechada: é ainda o homem que chamávamos de bistrô nazi. Seu rosto não envelheceu nada, ali o tempo não existe, os anos não passam. Mas não há nisso surpresa, é razoável que aquele homem meticuloso continue a dominar cada detalhe de seu trabalho, e nada escape ao seu controle, nem mesmo o tempo. A ambição de seu perfeccionismo talvez seja a de durar para sempre.
Chego à Catedral de Notre-Dame, muito mais permanente que o pequeno bistrô, e no entanto transformada, chamuscada ela sim pelo tempo. Lembro da aflição de vê-la ardendo em chamas, pela televisão, há alguns incertos anos. Embora íntegra, está agora partida ao meio, metade branca, metade coberta de cinzas. Me pergunto se será esse o efeito mais exato do tempo, se o tempo será essa fuligem a cobrir tudo indistintamente, ou quase. Se a luta da nossa espécie contra o tempo consistirá em lavar essas cinzas imperecíveis, com obstinação, com desespero.
Penso nisso enquanto me afasto da catedral, enquanto me aproximo da casa onde vivi há dez anos, que nem casa chegava a ser, não passava de um ateliê numa residência artística. Ali, junto à fachada meio apagada, meio acesa, dou goles mais fartos no segundo vinho da noite e descanso num parapeito. Contemplo longamente a janela por onde costumava contemplar dez anos atrás, sem me importar em saber se é a janela certa. Maldigo os novos habitantes que não vejo, os que tomaram meu lugar desde que parti, mas maldigo só de brincadeira, porque já entendi que não quero estar ali. Aquele não é meu lugar e talvez nunca tenha sido.
Eis que me deparo com o sentido de tanta viagem ao interior de mim mesmo: não a nostalgia, não o lamento, não a melancólica observação de todo o passado que já não tenho. Talvez o contrário disso. Uma lenta celebração da passagem do tempo, a afirmação da certeza de que era preciso partir porque havia tanto a viver, de que é sempre preciso partir porque há tanto a viver. E então me ergo um pouco cambaleante e parto por ruas desconhecidas, vou voltando à minha casa distante no espaço e no tempo, vou voltando a um futuro que se torne abrigo.
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