Julián Fuks

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Opinião

Um grandioso homem simples: suplício e triunfo de José Pepe Mujica

A história desse homem começa com seu suplício. Começa nos tantos anos que passou preso num calabouço escuro, às vezes dias inteiros sem comer, sem tomar água, sem ouvir a voz de ninguém, sem que lhe garantissem o mínimo essencial, um livro, um banheiro. Em luta desde o princípio para que houvesse na desolação da solitária ao menos um penico. Esse homem devia permanecer em silêncio, falar não lhe era permitido, mas ali no calabouço aprendia a língua das formigas, e tudo contava a elas, e tudo delas ouvia, absorvendo a cada dia sua lição de resistência ao mundo hostil.

Por vezes o tiravam dali, encapuzado, e o colocavam entre outros homens, encapuzados, que deviam permanecer calados e indiferentes a todo arbítrio. Mas eles não se calavam. Inclinando um pouco a cabeça podiam ver algo por uma fresta ínfima do capuz, e então punham em ação o vasto idioma das mãos que iam depreendendo por instinto, todo um alfabeto de dedos que se tornava imprescindível. Assim, em caligrafia oscilante e muda, uns mais eloquentes, outros tímidos, conversavam sobre dores, angústias, sonhos, visões de futuro.

Não pesava sobre ele, não pesava sobre esses homens nenhuma condenação, nem indiciados eles haviam sido. Não passavam de reféns de uma ditadura sombria. A ameaça era explícita, todos a conheciam: se houvesse qualquer nova ação guerrilheira dos Tupamaros, eles seriam mortos no mesmo dia. Mas sobreviveram, aquele homem ainda viveria muito, somaria incontáveis crepúsculos. Mais de uma década depois de ser preso, voltou a ver a plenitude do céu quando seu país retomou a democracia, e saiu da cadeia com aquele primeiro penico nas mãos, convertido em vaso para duas flores esquálidas, ressequidas. Levava consigo a vida que nunca o abandonara na cela.

A história desse homem começa bem antes de seu suplício. Começa no instante em que se tornou florista, ainda menino, depois da morte precoce de seu pai, para ajudar no sustento da família. Continuaria florista a vida inteira, mesmo enquanto estudasse Direito, mesmo quando se fizesse guerrilheiro, em busca de alguma justiça, de uma revolução, quem sabe. Seria um florista distante de suas flores quando tomasse com seus companheiros a cidade de Pando, seus vários bancos, a central telefônica, seu quartel de bombeiros. Também quando enfrentasse as forças repressivas e acabasse por sofrer seis tiros. Também quando fosse preso, e comandasse a fuga da cadeia de mais de cem militantes, por um buraco que levava ao esgoto de Montevidéu.

Só quando fosse preso pela terceira vez viria a se arrepender. Não da luta que empreendeu, não da dor que lhe coube sofrer, como bem mais tarde viria a dizer: "Estou profundamente arrependido de ter tomado as armas com pouca destreza, e não ter evitado assim uma ditadura no Uruguai. Porque quando o povo uruguaio quis entrar em ação, eu não estava nas ruas para lutar com ele, e disso vou me arrepender a vida inteira."

A história desse homem vai muito além de seu suplício. Esse homem, José Pepe Mujica, que saiu da prisão para o abraço na mulher de toda sua vida, Lucía Topolansky, militante tupamaro também ela, esse homem viria a ter uma chácara humilde em Rincón del Cerro, uma casa com telhado de zinco cercada de alguns animais esparsos, um trator, um fusca azul que conduziria por décadas, e uma cachorra com três patas chamada Manuela. Esse homem viria a ser o presidente de seu país, o mais querido e inesquecível dos presidentes, a combater ferrenhamente dogmas e misérias, a questionar as certezas insensatas com que insistem em se reger os corpos, os mercados, os sistemas.

A história desse homem vai muito além de seu suplício e de seu triunfo também. Esse homem se tornaria o mais próximo de um sábio que pudemos conhecer, um sábio pertinente, um sonhador realista, um visionário do possível, o mais encantador entre os políticos do planeta. Talvez se torne, com sua trajetória de dor e teimosia e transformação perene, um mito de seu continente, uma encarnação da própria América Latina. Mas essas declarações abstratas e etéreas nunca foram de seu interesse. Esse homem o que fez foi devolver à política o seu sentido perdido, sua intervenção direta nas condições de vida de um povo, sua defesa de uma existência em tudo mais digna, mesmo que modesta - ou sobretudo quando modesta, alheia aos imperativos do consumo.

Nunca terminaremos de contar a história desse grandioso homem simples, José Pepe Mujica. Mas ela há de continuar a propagar sua lição em palavras indizíveis, talvez pronunciadas na língua incompreendida das formigas.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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