Julián Fuks

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Opinião

Deus não existe, por isso precisamos tanto de pessoas boas

Era uma tarde límpida, de um céu azul imaculado. Eu flutuava num barquinho pelas águas de um mar calmo, movido apenas pela força do vento, no leme a minha mão firme. Reparei que não havia ninguém ao meu redor, que nem o mais remoto corpo os meus olhos alcançavam. Eu estava sozinho como nunca estivera antes, existíamos apenas eu e o mar profundo e o continente distante e o céu enorme. Em outro tempo seria a ocasião perfeita para falar com um etéreo outro que costumava tomar meus pensamentos jovens. Mas não, naquele instante me dei conta do que já sabia, que não havia ninguém a gerar ou reger o mundo, e senti nisso beleza e tranquilidade. Uma voz fictícia dentro de mim se calava: a partir dali eu conversaria apenas comigo quando lançasse ao vento as minhas palavras.

Não era nenhuma revelação, nenhuma epifania, era o oposto de uma experiência mística. Não passava de uma percepção simples e elementar: Deus não existe. Existem muitas coisas no mundo, é claro, as que vemos e as que não vemos, as que conhecemos e as que não conhecemos, as que entendemos e as que não entendemos, mas Deus não existe e a humanidade já o sabe, mesmo que não julgue tal saber aceitável. Sempre se pode querer chamar de Deus toda essa dimensão do invisível, do incognoscível, do incompreensível, mas será um nome inexato. E não há nessa declaração nenhuma provocação barata, nenhum desrespeito a quem defenda o contrário: escrevo isso porque confio no leitor honesto que note como são inofensivas e óbvias as minhas frases, como são de todos nós.

Não preciso aqui erguer um muro de argumentos em defesa do ateísmo porque, contra toda expectativa, ele já se estabeleceu com força em nossa cosmovisão, em nosso imaginário. Ainda que tantos rejeitem o ateísmo de maneira sumária, ainda que a imensa maioria continue a afirmar sua crença na existência de Deus, o caso é que a parte mais importante da nossa cultura já não dispõe de sua figura. O romance, forma maior de expressão da vida na modernidade, é a representação insistente de um mundo abandonado por Deus, isso já disseram tantos teóricos. O teatro se livrou há muito de Deus, assim como da predestinação, do Destino, da Fortuna. O cinema chegou no mundo quando já nada de divino dava as caras. Nenhuma obra relevante dos últimos séculos traz a crença religiosa em seu cerne, ou a intervenção divina como um de seus elementos estruturantes. Deus não encontra lugar nem em sonhos ou ficções, em suma.

Tão presente é a ausência de Deus, que surpreende que se trate com palavras tão duras os poucos que explicitam seu próprio ateísmo. Entre as coisas que não compreendo no mundo está o temor difundido de que ateus sejam indiferentes, desumanos, insensíveis. Nenhuma observação empírica da natureza das pessoas o confirma, assim como nenhum raciocínio. A ideia de que deixamos de ser bons se não concebemos um deus que nos vigia sobre os ombros é absurda. É a própria negação da ideia de bondade: nesse caso seríamos éticos, humanos e sensíveis apenas porque alguém nos vigia, por medo de uma penitência futura. Parece muito mais evidente que ser bom e agir por um mundo bom seja uma finalidade em si mesma, que não precisa de sentinelas, não precisa de uma força obscura que a imponha de forma sinistra.

E, no entanto, bem sabemos que a ética, a empatia e a sensibilidade não chegam a prevalecer no mundo iníquo e cruel em que vivemos, e há até quem se valha desse fato para afirmar a inexistência de Deus — em argumento fraco, cumpre dizer. Nesse mundo desgraçado, quem diz é o humor de Millôr Fernandes, Deus não merece existir. Teístas e ateístas, não importa, somos todos seres solitários lançados numa mesma terra que se fez hostil, sob o firmamento mudo. Teístas e ateístas aprendemos igualmente que é fundamental construir uma justiça terrena, lutar por uma sociedade mais livre, tolerante, igualitária, em que os vulneráveis do mundo não se vejam tão a esmo. Aprendemos igualmente, mas nem sempre agimos para que assim seja, muitos preferem esquecê-lo em nome de seus próprios interesses.

Porque Deus não existe, é o que digo, é que precisamos desesperadamente de pessoas boas em luta incessante. Porque Deus não existe há algo a se lamentar na morte de um sujeito que pareceu bom e ocupou um cargo de significativo poder — ainda que não se acredite de fato no que esse poder representa. Porque Deus não existe é que ansiamos que seja bom o outro homem solitário, sob o céu azul imaculado, que agora assume as suas vestes.

Opinião

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

** Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do UOL.

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