Sobre o ódio aos deslocados do mundo, insensatez maior dos nossos dias

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De todos os fartos delírios que o mundo tem nos oferecido, nenhum é mais delirante que o desprezo que tantos têm sentido pelos imigrantes. A ideia do forasteiro como um adversário, um usurpador, um inimigo, um invasor indesejável a ser vetado, barrado, banido.
Nada é mais insensato do que esse ódio aos deslocados do mundo, a começar pelo fato de que somos todos deslocados em alguma medida, em tempo próximo ou longínquo. Quem despreza o outro despreza também a si, pois sabe que será sempre o outro do outro — eis uma máxima de refutação impossível. O ódio desabrido ao imigrante é a forma que a humanidade encontrou de odiar a si mesma, de atacar o seu próprio corpo sem sentir a dor de seu vício.
Se algo sabemos sobre o nosso passado, é que temos sido desde sempre seres em trânsito, pela mera sobrevivência no espaço, pelo desejo de conquista do desconhecido, ou por razões econômicas, sociais, políticas. Daí que jamais se possa saber a quem pertence uma montanha, um vale, um rio, sendo mais razoável concluir que coisa alguma pertence a ninguém. Daí que resulte absurdo reivindicar a posse de uma terra, chamá-la de país, lhe dar um nome e desenhar para ela uma bandeira, traçar no solo uma linha invisível e só deixar passar alguns, relegando os demais ao desterro. Autoridade nenhuma no mundo deveria ter esse poder: ninguém é dono de nada a não ser de seu corpo, seu pensamento, seu sonho.
Mas aqui não termina o raciocínio, pois há um tanto mais a dizer. É fácil observar que toda nova migração, de quem quer que seja e onde quer que seja, produz muito mais efeitos positivos do que negativos. Nem é preciso apelar aos argumentos econômicos, embora eles não faltem por aí. Basta olhar para a cultura, olhar para aquilo que de mais deslumbrante a humanidade cria, sons, imagens, sabores, formas. Basta percorrer as primeiras linhas de umas tantas biografias para descobrir quanto da arte é feito por deslocados, desterrados, degredados, quanta compreensão e quanta beleza surgem de todo esse movimento. Não há acaso: bem se sabe como cresce um pensamento com uma boa troca de perspectiva. Ninguém enxerga a totalidade de uma terra tão bem quanto aquele que alguma vez a avistou no horizonte.
Mas há um argumento maior do que todos esses, e com ele me deparei enquanto lia Latim em pó, de Caetano W. Galindo. Tentava entender melhor a formação do português, essa língua rica que toma de modo bastante homogêneo o país, língua "tão nossa e tão antiga, tão nova e de origens tão distintas", como o autor a define. Mas o que li foi algo que ia muito além disso, foi o curioso mecanismo com que se formam quase todos os novos idiomas, sempre a partir do deslocamento de grandes massas de sujeitos adultos, que vão trazendo seus novos nomes aos objetos que veem, e vão dobrando a dicção local aos limites de sua pronúncia.
Por que falamos este nosso português, este idioma que julgamos tão próprio da nossa terra, tão decisivo para uma identidade nacional? Não porque tenhamos nos mantido isolados, longo tempo segregados, coisa que nunca aconteceu. Pelo contrário, porque temos sido, como quase todos os povos, continuamente visitados por outros, e cada visitante traz consigo suas palavras e seu sotaque, e cada visitante se torna um de nós. Convém, quem sabe, tratá-los bem — amá-los, já entendemos, será amar a nós mesmos. São afinal os imigrantes os que criam arte, inteligência, língua, vida. Temos a sorte de sermos todos imigrantes também.
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