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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sobre o texto perdido de Italo Calvino e a falta das palavras nunca ditas

O escritor italiano Italo Calvino em sua casa em Roma em 1984 - Gianni GIANSANTI/Gamma-Rapho via Getty Images
O escritor italiano Italo Calvino em sua casa em Roma em 1984 Imagem: Gianni GIANSANTI/Gamma-Rapho via Getty Images

Colunista do UOL

04/03/2023 06h00

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Às vezes sinto falta do que nunca existiu. Do livro sobre nada que Flaubert tanto desejava escrever, sem jamais conseguir, do longo poema épico que Borges dizia estar destinado a criar, mas não criou. Sinto falta sobretudo de uma pequena conferência que Italo Calvino nunca deu, em que estaria contida uma mensagem essencial para o nosso tempo: sua proposta final sobre os princípios que deveriam marcar o novo milênio, sua palavra última sobre o indispensável à escrita e à vida, palavra que se perdeu irreparavelmente.

Acho que não é exagero meu. Conta-se que o grande escritor italiano passou o ano de 1985 obcecado com seis conferências que deveria dar num prestigioso ciclo acadêmico de Harvard. Na véspera da partida para os Estados Unidos, acabou por seguir outro prestigioso ciclo, cometendo a impolidez de morrer. Sua mulher foi encontrar em cima da escrivaninha cinco conferências perfeitas, compostas com sua erudição costumeira e refletidas até o limite de cada ideia. Só a sexta faltava, a sexta ele deixara para escrever em Harvard. Da sexta só o que ficou foi o título e uma mísera referência bibliográfica.

Até hoje circula assim o livro: são as célebres "Seis propostas para o próximo milênio", de Italo Calvino, mas apenas cinco de fato existem. Cada uma traz no título um princípio estético que o autor se propõe a defender. Em "Leveza", a necessidade de retirar peso da estrutura narrativa e de conter a opacidade da linguagem. Em "Rapidez", a busca por uma economia de acontecimentos, por um enredo puntiforme em que nada sobre e não se perca tempo. Em "Exatidão", o imperativo da palavra justa; em "Visibilidade", a imagem como cerne do discurso literário. Em "Multiplicidade", a defesa da ambição de propósitos, de uma literatura que tudo abarque, que absorva do mundo sua complexidade.

"Consistência". Esse era o título da sexta conferência, aquela que ignoramos, a que talvez nos falte mais do que percebemos. Tal como a imagino, embora a imaginação seja sempre pouco digna de confiança, nela se faria o apelo por uma literatura que não abdicasse de vez de alguns de seus rigores, uma literatura comprometida com o que é sério, coerente e verdadeiro. O apelo por uma arte que prezasse também a concentração, e não a dispersão que marca a nossa época, também a espessura, e não a fluidez que consigo nos leva. O que surpreende nesse último tema é que, desta vez, Calvino não parece reconhecer uma tendência, e sim propor algo que contraria o rumo dos tempos.

Não é tão mísera a referência bibliográfica de que o autor se valeria para falar de consistência. Segundo dizem, haveria várias menções a "Bartleby, o escrivão", a novela impecável de Herman Melville sobre um funcionário que se recusa a cumprir as ordens que recebe, que a tudo responde "Prefiro não". Não é difícil cogitar que Calvino estimasse a habilidade do autor em produzir um livro sem distrações ou devaneios, um livro em que tudo conflui para o trágico e necessário desfecho. Mas gosto de pensar que ele elogiaria também a consistência do personagem, a teimosia de Bartleby em dizer não, sua recusa a compactuar com os ditames do chefe, seu inconformismo tão diferente da submissão dos que o cercam. Com Bartleby, creio, nossa tão obediente literatura do novo milênio teria algo a aprender.

Como em Calvino, assim como em Melville, tudo é a um só tempo a coisa em si e seu contrário, cabe também pensar que o autor não faria uma condenação terminante da inconsistência. Consigo imaginar a ressalva que ele ergueria contra o excesso de consistência, contra a previsibilidade que pode tomar um escritor quando se faz fiel demais a seus hábitos, fiel a seus preceitos. Na inconsistência sutil, na justa adesão à inconstância, residiria sua capacidade de surpreender o leitor e de lhe provocar algum desconcerto. Monótonos os autores consistentes a vida inteira, reféns de uma coerência indesejável, reféns de si mesmos.

São a um só tempo analíticas e premonitórias essas conferências finais que Calvino nunca deu. Mas, pela importância do autor, e pela enorme difusão que tiveram quando publicadas em livro, não é disparatado pensar que elas próprias tenham definido o futuro em alguma medida, tenham ativamente prefigurado o tempo que vinha. Graças a Calvino, somos hoje mais leves, mais rápidos, mais exatos, mais visuais, mais múltiplos. Tudo isso a literatura deste milênio, e o pensamento deste milênio, foi capaz de se tornar, é preciso conceder. Infelizmente Calvino morreu e não pudemos nos tornar mais consistentes. Volto ao princípio, que falta nos fazem certas palavras que nunca existiram.