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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Manifesto da literatura contra a mentira, o ódio e a insensibilidade

O escritor argentino Júlio Cortázar, em foto de 1976 - Reprodução
O escritor argentino Júlio Cortázar, em foto de 1976 Imagem: Reprodução

Colunista do UOL

22/10/2022 06h00

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Nós, escritores e escritoras, prosadores e poetas, prolíferos e inéditos, vociferantes e mudos, vivos e mortos, nos reunimos nesta crônica para manifestar nosso repúdio ao uso indecoroso da mentira, do ódio e do obscurantismo para fins políticos devastadores. É pelo momento tão agudo na história de um país que decidimos nos unir, apesar das nossas diferenças, da vastidão que nos caracteriza. Somos infinitos e diversos, existimos em todas as épocas, escrevemos em todos os estilos, e ainda assim chegamos ao consenso de que está em andamento um processo destrutivo, disruptivo até o limite, e que toda palavra que possa detê-lo deve ser empregada com urgência.

Somos afeitos a invenções, fantasias, fabulações, acreditamos na potência da imaginação e em sua cuidadosa conversão em obra concreta, concebida nas mentes e forjada pelas mãos. Mas não podemos tolerar a escandalosa manipulação, não podemos aceitar que a mentira se faça instrumento de um programa retrógrado, intolerante, violento, em tudo contrário à sensibilidade e à sensatez. A mentira é inimiga da literatura, é inimiga da cultura e do pensamento. Vai corroendo toda percepção legítima e todo discernimento, vai abatendo a razão até que só restem ideias confusas e equívocas. Cabe à literatura, nesses momentos, contrariar seu gosto pela fantasia e se aferrar a uma noção mais imediata de verdade, marcando posição contra a falácia, o engodo, as falsidades míticas.

Ecoamos aqui a voz do companheiro Julio Cortázar: "os acontecimentos desta realidade que nos assola (será realidade este pesadelo irreal, esta dança de idiotas à beira do abismo?) obrigam a suspender os jogos, e sobretudo os jogos de palavras." Diante desse pesadelo irreal que se disfarçou de realidade, cabe à literatura contrariar a corrosão de sentidos e nomear com precisão máxima, voltar a afirmar o que se turva entre mentiras ruidosas. Dizer ainda uma vez, e suplicar para que enfim se ouça, que estamos no limiar entre a barbárie e a civilidade, entre a inclemência e a sensibilidade social, entre o arbítrio e a liberdade, entre a brutalidade e um mínimo de paz.

Estamos entre o horror e qualquer possibilidade de lirismo, e também por isso nos manifestamos. Porque estamos fartos desse assédio constante do presente calamitoso, estamos fartos da gravidade do real que não nos permite afastar o olhar nem por um átimo. E porque não há ficção possível a criar quando nos chega a notícia de um menino que ligou para a polícia por estar sofrendo um ataque virulento da fome. E não há metáfora possível a idear quando circula por ruas periféricas um caminhão carregado de ossos, sob os olhos ávidos daqueles a quem tudo falta. É indigente a literatura diante dessa realidade desastrosa e miserável, e não a aceitamos. E sobretudo não aceitamos, não podemos mais aceitar, essa realidade em si mesma, a sobrevida da fome, da indigência, da miséria, do desastre.

Sabemos que "para o impasse da poesia e do homem não há soluções definitivas", como bem observa Ferreira Gullar aqui ao nosso lado. E, no entanto, se escrevemos este manifesto a mãos infinitas é porque acreditamos na possibilidade de um diálogo, de um entendimento entre vozes díspares, do estabelecimento de alguns princípios elementares, indubitáveis — justamente os que agora estão sob ameaça. Acreditamos na possibilidade de um coletivo vasto e inclusivo, aberto a novas mãos e novas vozes, contrário à segregação persecutória que tem se visto em tantos lugares. Acreditamos na possibilidade de um nós, mesmo que fictício, mesmo que utópico, este nós que convoca a todos na esperança de se fazer real e majoritário num futuro muito próximo.