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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Não basta defender a democracia, se o voto já pode ser um ato de destruição

Ato em defesa da democracia em frente ao Fórum de Justiça Federal na Avenida Paulista em São Paulo (SP), nesta quinta-feira (11) - Marina Uezima/Futura Press/Folhapress
Ato em defesa da democracia em frente ao Fórum de Justiça Federal na Avenida Paulista em São Paulo (SP), nesta quinta-feira (11) Imagem: Marina Uezima/Futura Press/Folhapress

Colunista do UOL

13/08/2022 06h00

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Foi bonita a festa, pá, fiquei contente, mas poucas vezes tão ciente de que isso não pode bastar. Cercaram-se de corpos vivos as arcadas, ouviram-se vozes exaltadas, proferiram-se discursos solenes, contundentes, plurais, replicou-se por toda parte a necessária carta. E, no entanto, só o que se fez foi declarar com ênfase máxima o mínimo: que o país não aceitará um novo assalto autoritário, que seu truculento mandatário deve parar de afrontar instituições e atentar contra a ordem democrática. Perfeito, essa mensagem ficou clara. Mas não terá chegado a hora de dizer algo mais, de afirmar quanto é truculento também o voto nessa política desvairada?

Nestes últimos anos absurdos, aflitivos, desoladores, não foi preciso estar atento para testemunhar quanto desastre um presidente eleito pode causar, quanta destruição, quanta violência, quanta dor, quanta fome. Poucas vezes na história foi tão fácil atribuir um rosto a tal conjunto de desgraças, e chamá-lo por seu nome. Ainda assim, um importante contingente de cidadãos continua a apoiá-lo — às vezes contra todos e contra si mesmos, contra sua percepção mais íntima e franca do que pode ser melhor para o país. Talvez valha então insistir no óbvio, caso tenha lhes escapado: o apoio a Bolsonaro é já o ato de destruição, é já o gesto fatal de corrosão institucional, é já em tantos aspectos o golpe de que tentamos escapar.

O voto é quase instrumento único de participação numa democracia alquebrada, e por isso há quem vote e já se sinta de imediato um democrata. Ignora, desse modo, ou finge ignorar, que um voto pode ser autoritário, um voto xinga e achaca, faz ressoar impropérios, mentiras, impropriedades. Um voto pode ser violento e intolerante, pode armar os brutos e subjugar os vulneráveis. Um voto pode ser de extrema insensibilidade, empobrecendo a população inteira, propagando a miséria por toda parte. Um voto pode pôr a floresta para queimar, pode fazer um país inteiro arder e secar, pode convertê-lo em deserto futuro. Um voto pode de mil maneiras matar, por doença, por bala, por estupidez, por descaso.

Não se revogará por isso nenhum direito ao voto, que deve ser soberano e inquestionável. Que o eleitor escolha com liberdade, e que o desígnio da maioria seja respeitado — sobre isso se falava nas arcadas, com toda a justiça. Mas essa é justamente a razão para que compreendamos o voto em sua profunda responsabilidade, como um ato político de suma importância e de consequências irrevogáveis. São os que votam num projeto dessa natureza que autorizam e incitam a barbárie. O paradoxo está dado: é o eleitor desse projeto destrutivo quem tensiona a democracia até o limite de sua fragilidade. Bolsonaro venceu uma vez, e os efeitos foram nefastos. Vale a máxima de Pirro: mais uma vitória como essa e estaremos arruinados.