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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sobre o ruído contínuo da vida parental, e uma hora necessária de silêncio

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

09/07/2022 06h00

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A vida seria muito melhor se não fosse diária, pensei nessa frase de Millôr Fernandes quando fui despertado pelas minhas filhas, suas mãos pequeninas me arrastando pelo braço quarto afora. Já passa da hora de denunciar esse desastre do planejamento social que são as férias escolares, as crianças existindo pela casa sem intervalo, com suas urgências terminais, seus desagrados súbitos, seus alaridos de entusiasmo. Filhos são uma pequena dádiva de beleza e intensidade, isso já se disse demais; o que faltou dizer é que deviam ser intermitentes ou sazonais, como as estrelas, os ursos, as flores.

Em tempos normais, minha mulher e eu aplicaríamos agora nosso rígido esquema de revezamento parental, sob a autoridade irrefutável do relógio. Em metade das horas eu teria a totalidade de uma vida, submergiria no burburinho da cidade dos adultos, pararia para sentir o frescor do nosso ar poluto. Mas, nestes tempos infectos, ela calhou de cair contagiada por um vírus mais discreto que outros, com uma mononucleose que a mantém prostrada na cama há muitos dias, todos idênticos em mal-estar e cansaço. E a mim restou, então, a saudável e enérgica entrega total da vida às minhas filhas, primeira coisa valiosa que lhes antecipo de herança, muito antes do que imaginaria.

Ninguém me entenda mal, não quero desconsiderar aqui o imenso teor de surpresa, riso e revelação que emerge dessa relação cotidiana — sou um entusiasta da procriação, muitos o sabem. Mas quero considerar aqui a inevitável perda de consideração, o extraordinário déficit de introspecção, a escassez de reflexão profunda que resulta dessa presença tão contínua. Não pude pensar isso enquanto brincávamos de alimentar as bonecas e colocá-las para dormir, como mais tarde repetirei com bonecas vivas, num jogo de espelhamentos e desvarios. Só penso agora, com as meninas entretidas na televisão e enquanto tempero o frango, escrevendo este texto sem as mãos, no ínfimo ínterim que desponta entre as tarefas intermináveis. Escrever assim é quase impossível, digo com solenidade para mim, e de pronto ouço o escárnio da mulher milenar que me lê: lá vai o homem falar do que vive há cinco anos no máximo, como se inventasse agora, ó, gênio, o que sempre soubemos e insistimos em dizer.

A infinitude da missão parental responde a uma equação complexa, que alguém com mais tempo saberá formular em números: quanto mais atenção se dedica à criança, mais atenção ela deseja, mais demandas surgem ao pai atento. O pai atento, como a mãe milenar atenta, torna-se desatento a tudo mais que o circunda, ouve apenas lateralmente sobre o assassinato do ex-premiê japonês ou a queda estrepitosa do britânico. O mundo se torna, assim, um rumor difuso e insensato de compreensão difícil, ao menos nisso semelhante ao bulício ininterrupto das crianças. Tudo constitui um mesmo fundo de agitação e vozerio a se apoderar da mente do sujeito, que algum dia se quis pensante.

Quando me convidaram a escrever esta coluna semanal, minha primeira filha acabava de nascer, e me sugeriram que eu falasse sobre a paternidade. Recusei. Eu era um pai tão recente quanto ignorante, jamais saberia dissertar sobre essa função cheia de sinuosidades conhecidas intimamente por tantos. Muito mais à vontade estaria para falar de literatura, de arte, de política, de tudo o que atraía meu interesse, tudo o que eu achava que me constituía. Escrever sobre a paternidade, como agora faço, não vem de nenhum saber adquirido ao longo dos anos, não vem da ilusão de que eu já não seja um pai ignaro e imaturo. Vem, pelo contrário, do mundo que perdi, da literatura, da arte e da política que a cada dia vejo mais alheias a mim, eclipsadas pela paternidade. O que eu era já não sou; eu mesmo estou alheio a mim, à sombra desse longo eclipse.

Mas há momentos de luz, sempre há, ou não seria a vida. Anteontem exigiram que eu me apresentasse à Caixa Econômica Federal, para conseguir com máxima celeridade um documento irrelevante sem sentido algum — o documento em si já poderia ser a crônica. A espera na fila do banco era o próprio cancelamento da experiência, a negação do pensamento levada ao paroxismo. Mas quando enfim me permitiram sair, me pus a caminhar por uma prazenteira Teodoro Sampaio, a ver os rostos animados das pessoas, e entrei num sebo em que não entrava havia muito, cinco anos talvez. Ali, nas páginas daqueles livros que me pus a folhear a esmo, ali morava o tempo, a experiência, o pensamento.

Menti. Não foi ao despertar que me lembrei da frase longínqua de Millôr Fernandes, foi num exemplar empoeirado daquele sebo que a encontrei. Foi ali também que me recordei ter ouvido falar de uma velha prática de Luis Buñuel, que dizia tomar uma hora para si a cada dia, num bar qualquer, sem leitura ou companhia, entregue apenas ao diálogo franco com seus pensamentos. Grande sabedoria tinha Buñuel, e grande sorte também. Uma hora, uma hora talvez baste, uma luxuosa hora diária de silêncio é só o que peço para recobrar a sanidade.