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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Breve discurso amoroso, em resistência à bestialidade do país

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

29/05/2022 06h00

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(Na noite de ontem me casei, com a mulher com quem estou há vinte anos. Numa semana em que o país revelou de novo a dimensão de sua selvageria, achei que estes fragmentos de uma história e de um discurso amoroso eram o melhor que eu poderia oferecer aqui. São as palavras que disse ontem a ela, à Fernanda.)

O coração é um músculo feio, todo assimétrico, pulsante, sanguíneo. Sempre me intrigou que escolhessem o coração como símbolo de um sentimento tão importante, do afeto maior que move a humanidade desde o início dos tempos. Sempre estranhei também a conversão desse músculo numa imagem harmônica, impoluta, sem defeitos, um coraçãozinho brilhante e vermelho. Essa imagem nunca me convenceu, nunca me pareceu que o amor morasse no coração, nem na versão muscular nem na icônica, e por isso, talvez, por muito tempo amei só com as ideias. Até chegava a fazer minhas pequenas declarações de amor: dizia que alguém morava no meu coração, e apontava no mesmo instante para o meu cérebro.

E foi então que me aconteceu essa coisa estranha de me ver tomado por um sentimento, por uma abstração que escapava do cérebro, comprimia o coração e a partir dele se espalhava pelo corpo inteiro, puro movimento convertido em ânsia e desejo. Em outras palavras, foi então que você me apareceu, ou que eu finalmente senti você. Diante de você, todas as ideias prévias se subverteram, tudo o que eu julgava conhecido, todos os pensamentos se fizeram instáveis por um momento. Diante de você, eu me tornava um menino cheio de incertezas, menino abismado encarando o mundo com pernas trêmulas. E ainda assim, paradoxalmente, eu me sentia mais forte e mais firme, não me desfazia do homem em mim, continuava a existir no mundo com o que tenho, minhas ideias, minha ânsia, meu desejo. E naquele momento, e dali em diante, meu desejo era estar em você, dormir em você, morar em você.

O amor em que acredito mais é aquele que deriva da admiração, e não tenho dúvida de que foi por esse amor que eu comecei. Era profunda a admiração que você suscitava em mim, como ainda é: sentia e sinto uma atração irresistível pela sua convicção, sua clareza de propósitos, de princípios. Você tem uma firmeza impressionante, que quase se confunde com teimosia, com uma solidez inamovível — e nem sempre é fácil viver com alguém assim, isso preciso admitir. E, no entanto, você não é só rigidez, você é feita de uma carne mais maleável, toda ternura e carinho e generosidade. E você vai se transformando lentamente ao longo dos anos, num pequeno espetáculo em que só reparam os mais íntimos, os mais atentos. Você escuta muito, lê muito, a tudo está alerta, e vai processando suas mudanças em silêncio, até que um dia tudo vem à tona num discurso nítido, evidente, feito da mesma matéria que construía suas certezas anteriores. E é nesses momentos que eu me contagio da certeza, que eu percebo mais forte como minha admiração se fez encantamento, se fez paixão.

Não consigo fazer o discurso típico de um casamento, contar como nos conhecemos, pinçar algumas cenas bonitas e cômicas, compor uma história em que tudo culmina neste específico ato. Estamos juntos há vinte anos, e é inevitável que os sete milhares de dias que passamos lado a lado, numa constância que nunca antes imaginávamos, conversando infinitamente, existindo infinitamente no mesmo espaço, é inevitável que esses dias se amalgamem numa coisa única, indistinguível de si mesma. Nossos vinte anos são uma só experiência, bonita e cômica e vibrante e às vezes difícil e às vezes dolorida mas sempre intensa, uma só experiência inacessível às palavras, resistente a qualquer síntese. Esta nossa relação, como toda relação imensa, existe apenas nela mesma, não se traduz em metáforas ou metonímias ou em discursos substitutos que tentemos tornar belos.

E, ainda assim, existem os tempos imperecíveis, aqueles que sobrevivem com bravura aos nossos anos de confusão e esquecimento. Existem, ao longe, aquelas noites primeiras que a gente estendia até o limite, as madrugadas que você passava na minha casa negociando com o relógio, mais dez minutos, mais dez minutos, e indo embora só quando amanhecia. Existe aquela primeira noite que passamos no nosso apartamento mínimo, comendo uma pizza no chão da sala, sem sofá, sem fogão, só nós, e existiram as noites seguintes em que fomos povoando o nosso nada com tantas coisas cativas, montando sobre o nada a nossa história comum, nossa vida. E, nessa vida, uma infinidade de noites festivas, como esta noite, noites em que a casa se encheu de amigos e de riso, num vigoroso presente que foi ganhando a forma deste passado que agora foge às palavras.

E houve o dia em que você anunciou que queria morar em Barcelona, que queria estruturar por fim as leituras que vinha fazendo do feminismo, e eu me vi desafiado a contrariar a permanência que sempre achei que me definia, me vi dizendo sem titubeios: eu vou com você, conta comigo. E mais tarde chegou a minha vez de partir, de passar uma temporada de escrita em Paris, e aí foi você quem aceitou sem titubeios: eu vou com você, conta comigo. E assim cuidamos de nos equiparar na entrega e no vício de nós mesmos, nesse equilíbrio fundamental em qualquer relacionamento, tão delicado, tão sensível.

Foi na volta dessas temporadas exuberantes e felizes que você contrariou uma velha certeza, sua decisão histórica e ferrenha de não ter filhos, e se juntou a mim nesse desejo desorbitado que mudou a nossa vida, mudou absolutamente tudo. Em poucos anos nos tornamos, além de amantes e companheiros, duas partes eficientes de uma equipe parental a desempenhar a missão maior que já enfrentamos, partilhando cada função com precisão máxima, contando as horas e os minutos de dedicação a essa tarefa hercúlea. E assim tem acontecido de nos encantarmos juntos, dia a dia, com a Tulipa e a Penélope, essas figuras únicas que nos abismam ante o desconhecido, figuras de uma intensidade fulgurante, e de uma complexidade que nunca decifraremos por completo.

Mas, se hoje estamos aqui, é por um específico dia atípico, um desses que não se confundem no torvelinho dos anos. O dia mais triste das nossas vidas, e não só das nossas, o dia em que o horror ganhou as eleições no país. Nós ainda secávamos as nossas lágrimas comuns quando você decidiu que devíamos nos casar, quando você me pediu em casamento, porque nunca se sabe, porque tudo é tão incerto e terrível e assim estaríamos mais protegidos. Aquilo me soou absurdo, de uma inverossimilhança absoluta, e eu recusei o pedido que partia do desespero, para só mais tarde entender que o que você propunha era outra coisa, outra forma de resistência. Que, quando o descalabro nos cerca e nos assombra, é preciso combatê-lo com toda fibra, mas é preciso também se resguardar dele em afetos mais sensíveis, na alegria, no amor, na perpetuação do desejo.

E então finalmente eu entendi que devia dizer sim, e aqui estamos, porque eu nunca termino de me admirar com você, e nunca me canso de aprender com você, de me deixar transformar por essa pessoa impetuosa e inapreensível que você é. É por você que eu me vejo, há vinte anos, obstinado em dizer sim, disposto a viver tudo o que for possível a dois, e também tudo o que for possível a cem, a mil, com estas pessoas tão queridas que fomos juntando ao nosso redor, e que são o que temos de mais valioso. E é por você que eu aprendi a sentir e a estimar o sentimento como eu nunca teria previsto, a aceitar o coração vivo e suas reverberações infinitas, a me apegar como nunca a esse músculo e a esse amor, assimétrico, pulsante, sanguíneo.