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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O frio é sujeito enigmático, só existe em língua estrangeira

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Imagem: iStock

Colunista do UOL

21/05/2022 06h00

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O frio é sujeito austero, fala uma língua estrangeira e áspera, nunca o compreendemos. Quando desponta em nossas ruas, enigmático em seu sobretudo largo, parece sempre um personagem importado, sofrendo de grave inverossimilhança. Pouco importa que anunciem sua chegada nos jornais: o frio nestas latitudes não tem credibilidade. E, no entanto, há estes dias em que ele se faz espectro espalhado no ar, e entra nas casas e nos poros, e cala fundo nos ossos, frio invasor que já não saberemos expulsar. Nem assim nos livramos da dúvida, da incredulidade, e por isso passamos a duvidar de nós, da nossa própria sanidade. Eis o que me torno, refém de um riso futuro, o ridículo escritor tropical que tiritou por algumas horas e já achou que podia narrar o frio, achou que sofria de um frio veraz.

A literatura brasileira, tão versada em outras verdades, revela sua total incapacidade quando o assunto é o frio. Nisso nossos grandes escritores têm falhado clamorosamente, nos limites do que pude averiguar. Longas horas passei a percorrer com mãos trêmulas coleções volumosas de boas crônicas e belos poemas, e não achei sobre o frio um único verso memorável, uma única frase que descreva o inverno de um jeito autêntico e nacional. O fracasso é compreensível, claro: escreve-se sobre aquilo que se conhece com profundidade, e por aqui o frio é esse exótico visitante ocasional, essa figura excêntrica que revolve as nossas roupas no armário, pede um chá no meio da tarde, dorme afogado em cobertores pesados, e parte ainda incompreendido sem deixar muita saudade — palavra que ele não sabe utilizar.

Em nossa literatura sobre o frio, o que mais se ressalta é a tendência ao escape, a fuga ao tema central. Drummond, que quase nunca falha, escreve uma "Elegia" em que tudo é frio: o frio é a noite, a bruma, o serro, a água, o frio é o próprio eu lírico e sua testa larga. O frio só não é o frio, que permanece inacessível ao poeta, intocado por sua sensibilidade. Em Vinicius de Moraes o início é mais promissor: "Meia-noite. Frio. Frio em tudo, e mais frio que em tudo, frio na Alma". Por um instante sentimos que ele vai descrever esta dor sem dor que nos toma o corpo, que vai além do corpo e chega ao âmago, e dali se irradia para cada extremidade. Mas não, logo ele se põe a perseguir a tal da alma, que foge cidade afora com a noite em seu encalço, para então cair ajoelhada, chorando a pedir perdão — nesse gesto tão comum em Vinicius, o perdão por nada, sem qualquer razão.

Em Rubem Braga, me enchi de esperança ao descobrir uma crônica que parecia focada, sob o título de "Inverno". Ali o problema não chegou a ser de dispersão literária, mas de falta das condições climáticas necessárias. Para ele, radicado em ruas cariocas, o inverno não passa de um "vento quase frio", que resulta na "mais estranha manhã que tenho visto no Rio", e que ainda assim já basta para que ele se ponha nostálgico e lamente ter que dar adeus aos belos dias de sol. Nesse sentido, Rachel de Queirós foi mais franca, assumindo para si que jamais sentiu um frio real e jamais chegaria a sentir, tendo nascido no Ceará e experimentado no máximo a brisa fresca dos trópicos. "Um desgosto de que nunca me consolarei será ir para a cova sem jamais haver conhecido frio de verdade, frio com neve, fogo aceso, agasalho até o nariz, luvas de lã."

E assim retornamos ao problema inicial, à nossa perene desconfiança dessa condição que não pode ser nossa, que nunca terá a nossa cara. O frio nos surpreende e nos toma de assalto porque nunca soubemos significá-lo, nunca chegamos a lhe atribuir palavras próprias, nunca o descrevemos senão com vocábulos retirados do fundo do armário, desusados, importados de terras remotas. São muitas as missões do momento, é verdade, e a que proponho é a mais estúpida e desnecessária. Ainda assim, sinto que é chegada a hora de criar uma poética própria para o nosso frio, uma literatura de inverno honesta e despudorada, feita sem luvas nem gorros nem cachecóis. Uma poética deste frio que cobre a nossa noite e vela de silêncio e imobilidade as almas que aqui estamos, gélidas, trêmulas, desamparadas.