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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Sobre a barbárie dos civilizados e a civilidade dos bárbaros

Massacre de Diego Tristan - DeAgostini/Getty Images
Massacre de Diego Tristan Imagem: DeAgostini/Getty Images

Colunista do UOL

30/04/2022 06h00

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Por longo tempo se acreditou, e muitos ainda acreditam, que a fundação do Brasil se deu com a vitória definitiva de um punhado de civilizados sobre a imensidão dos bárbaros. Assim se ensina a história, ou se ensinava, assim se celebra o passado: aqui chegaram os brancos e souberam impor sua fé e sua ordem sobre a desordem dos infiéis, dos incultos, dos incautos. Ao outro, sempre ao outro, se atribui a violência e o mal: aqueles seres desconhecidos, erroneamente chamados de índios, eram os primitivos, os selvagens, os canibais. Estariam condenados a uma brutalidade sem fim, se os brancos não tivessem chegado para lhes ensinar alguma civilidade.

Brusco corte para o presente que nos assombra, com sua violência extrema, sua destruição sem medida, sua intolerância escancarada. Se para algo nos servisse a brutalidade que tomou conta do país, embora a brutalidade nunca possa ter nenhuma utilidade, seria para expor com didatismo a inversão necessária dessa história: os supostos civilizadores sempre foram, eles sim, os bárbaros. Se nos faltava a imagem adequada para terminar de assimilar essa realidade, talvez agora a tenhamos, num caso ainda incerto, sob investigação. Alguns garimpeiros, retomando a busca por ouro que desde o início foi o propósito da invasão, e para isso destruindo a terra por onde passam, e de novo sob incentivo da autoridade maior deste grande território, foram denunciados esta semana por estuprar e matar uma indígena ianomâmi de doze anos. A esse ponto chegou — ou desse ponto nunca saiu — a terrível violação dos povos originários.

Alguém poderá alegar que não há continuidade entre presente e passado, que esse é um caso isolado e nada mais. A esse alguém podemos responder com a clarividência de Ailton Krenak, com sua afirmação de que nunca houve nenhuma paz, de que a impressão de paz é uma falsificação ideológica. "Nós estamos em guerra. A guerra é um estado permanente da relação com os povos originários, sem nenhuma trégua, até hoje", é o que ele diz em Guerras do Brasil.doc, um documentário estarrecedor. Essa guerra quase chegou a ser o fim de um mundo, dizimando em cem anos uma grande fração da humanidade. Mas ali não se encerrou, em vez disso se prolongando aos tempos atuais, em que as populações periféricas continuam a ser agredidas e vilipendiadas, no esforço por uma dizimação total.

Outro alguém, outro ser brutal, poderia arguir que tudo isso era inevitável, que do choque entre mundos só poderiam sair vencedores e vencidos, uma única sociedade sobrevivente do embate. Durante séculos se defendeu essa hipótese, a noção de que aquela era uma "guerra justa", que era justo combater quem contrariava a fé, justo ocupar terras e matar, justo escravizar, pois assim as almas seriam salvas. Mas a guerra era injusta de muitas formas, a começar pelo fato de que do outro lado não se via tanta sanha de morte. Krenak é quem descreve, citando Darcy Ribeiro: os brancos aqui chegavam famélicos e doentes, nada teria sido mais fácil do que matá-los. Em vez disso os indígenas os socorriam, os admitiam como mais um povo entre os muitos que compunham a diversidade local, ainda que com suas lutas e disputas territoriais. Completa-se a inversão da história oficial: em contraste com a barbárie dos civilizados, o que se via era sobretudo a civilidade dos bárbaros.

Essa história condena muitos de nós, muitos somos os invasores desta terra alheia, os genocidas de povos que nunca conhecemos. Mas é possível optar agora por uma transformação, é possível interromper a perene destruição, é possível nos tornarmos menos selvagens. Se a guerra é interminável, se há uma continuidade entre passado e presente, ainda cabe agir sobre o seu resultado, ainda cabe emprestar forças a uma resistência secular.

A escolha que se apresenta diante de nós é clara. Uma parte da nossa sociedade, a parte que tomou de assalto o poder, decidiu abraçar a barbárie sem mais pudor e fazer dela seu projeto, aderindo à guerra com ímpeto renovado. São os mesmos que incensam outras violências, que louvam o regime militar, a ditadura que lhes deixou como legado 8.350 indígenas assassinados. Contra esses há uma outra parte que quer aprender, que quer deixar de impetrar violências, que quer se fazer mais civilizada. Se não se trata ainda de uma escolha entre a barbárie e a civilização, ao menos será entre o triunfo dos bárbaros e sua contenção, tão urgente, tão necessária.