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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Uma força violenta de vida: o perfil de Lygia Fagundes Telles

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

16/04/2022 06h00

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(Na coluna da semana passada, contei a história do perfil de Lygia Fagundes Telles que escrevi no ano de 2007, um texto em que eu me tornava um espectro em seu escritório e acompanhava seu exercício diário de invenção e memória. Rejeitado pela revista "Entre Livros" por seu caráter excessivamente literário, acabou publicado apenas numa versão muito reduzida e alterada. Atendo agora o pedido dos leitores e publico aqui o texto original que permaneceu inédito nestes quinze anos.)

Desvencilhada das venezianas, a luz foi pousar sobre suas pálpebras. Com os olhos ainda flutuando na vaguidão do sono, Lygia ergueu a cabeça e quis saber onde estava. A mesma cama do dia anterior, de outrora. O mesmo relógio acomodado à quietude do criado-mudo. Uma grande face a observá-la da parede, estampada, não os olhos do mundo, a mesma face sob a mesma luminosidade avara. Levantou-se e abriu a janela para dar com a atmosfera acinzentada. Onde lera pela primeira vez que a beleza não se encontrava na claridade incólume da manhã ou na treva absoluta que sucede o ocaso? Que belo mesmo era aquele meio-tom, aquele céu incerto de tão nublado? E tão resoluta era a névoa que se tornava impossível, nesse dia, desvendar o que as nuvens confabulavam.

Deixou as mãos em concha se encherem de água para estalá-las gélidas contra o próprio rosto, mas ainda assim não se livrou da sensação de irrealidade. Examinou sua boca, o mesmo nariz afilado, os olhos a se estirarem para os lados, como os dos gatos. Tentou alcançar a própria pele, reconhecer-se às apalpadelas, e tocou apenas a superfície fria do espelho. Resolveu escovar os dentes, tomar banho enquanto escolhia no armário da mente a roupa que iria usar: calça preta e uma camisa listrada em tons de vermelho, o lenço em detalhes tão dourados quanto a pulseira e os brincos indispensáveis. Vestiu-se. Tudo pronto.

Abriu a porta do escritório como se a estivesse abrindo para um outro. Um sujeito invisível que passou ao seu lado, denunciado pela corrente de ar que gelou o antebraço descoberto, as mangas da camisa já dobradas. Não podia vê-lo, mas era certo que ele a via, sentado na poltrona de onde se podia divisar também a máquina. Sem outra opção, Lygia foi até a escrivaninha, por ora evitando pousar os dedos sobre as teclas sobressaltadas. Suspirou em lamento. Queria ficar só naquela manhã, sem lembranças, sem piedade. Esperou até a voz opaca lhe perguntar se ela ia ou não contar a sucessão inexata de acontecimentos que constituem sua existência, os fragmentos do passado que alguns chamam, teimosamente, vida.

Do tempo em que os sons ainda não eram palavras, da aflição do avô diante da criança tão crescida e tão calada, Lygia não se lembra de nada. O escritor escreve porque tenta recompor, quem sabe?, um mundo perdido, refazer os laços de uma vivência despedaçada, mas desse mundo, tão antigo, há quase nada que se salve. Uma melodia imprecisa (de Chopin, como alguém ensinaria mais tarde) saída dos dedos longos da mãe ao piano. A fumaça que subia do charuto do pai, tão alto, e empesteava a sala. O anel que ele lhe dava, embalagem do charuto, e que de tão largo era preciso apertar entre os dedos, senão despencava.

No princípio, e que se entenda o princípio como posterior a esse tempo de gestos menores, no princípio era o medo. Vinham as pajens com suas carapinhas repartidas em tranças, e o poder discursivo de quem foi obrigado a largar com precocidade a infância. De suas bocas iam saindo fantasmas, mulas sem cabeça, esqueletos descarnados que atiravam ossos e gritavam, desmontados, Eu caio! A menina Lygia apertava os olhos, mas era incapaz de fechar os ouvidos: em poucos meses conheceria aquelas histórias tão de cor quanto se as tivesse lido.

Foi em Apiaí — ou nos áridos ares de Sertãozinho, ou entre as folhas caídas de Descalvado, ou saltando por entre os bancos de Areias — que algo das normas dessa brincadeira ficou compreendido. Bastava que reunisse outras crianças em volta, que entremeasse ao público uns tantos cachorros com sua credulidade de orelhas eriçadas, que desentranhasse de sua própria cabeça os causos que ouvira em outros fins de tarde, e todo o temor se dissipava. Quando a voz fanhosa da caveira era entoada em seus timbres de menina, quando os dentes dos vampiros eram pequeninos como seus próprios dentes, subvertia-se a ordem do medo e era fácil rir dos pavores de toda gente.

Só não podia rir muito; a plateia era crédula, mas exigente. Tanto a menina se aferrava aos requintes da oralidade, tanto se fascinava com o poder de sonho das palavras, que amiúde acabava por trocá-las, um nome novo aqui que culminava num desfecho diferente acolá. O público vaiava. Não era assim que a história terminava, bradavam os frequentadores mais assíduos, não era essa a cor da roupa das crianças que o lobisomem devorava. Lygia não perdia a paciência, se desculpava. Foi então que teve a ideia: para não provocar mais alarde, passou a usar as letras que aprendia na escola, alinhá-las a custo para reduzir as nuances de cada paráfrase, entregando-se à difícil missão de registrar as histórias.

Agora, quando a mãe viesse anunciar que deviam partir mais uma vez, quando o pai (delegado ou promotor?) fosse transferido a uma cidade ainda além das outras três, nos confins do interior, ela teria algo maior a acomodar no carro de boi. Quase moça, poderia juntar aos brinquedos, cada vez mais escassos que as roupas, seu caderno de capa acetinada semelhante ao de outras senhoras igualmente tomadas por loucas. Sua mãe, por exemplo, que anotava os pensamentos em tinta roxa no meio das contas da casa e das receitas de sopa de cebola. Sua tia-avó, velhota e virgem, que desejou ser enterrada com os suspiros e versos que criou por toda a vida e nunca quis que fossem vistos. Caraminholas, decretava o avô, definitivo. Tímidas arremetidas que não seriam nada, pensava Lygia, se não fossem o pacato nascedouro de nossa literatura feminina.

O quê? Se ali seria o início também de sua entrega ao ofício? Lygia ergueu os olhos e voltou a tomar consciência do intruso, que parecia omisso, tentando imaginar sua expressão invisível. Estaria ele a ouvir com um meio sorriso, quiçá sardônico, quiçá contido? Estaria o queixo apoiado nas mãos compridas, transparentes de tão limpas? Valia mais não lhe dedicar tanta tinta. Aprendera: o sinistro desaparecia no exato instante em que se punha a contar e se livrava do medo do ouvinte.

Sim, da soma entre o hábito de amainar as manhas da língua em cadernos acetinados e a vontade de compreender as mulheres, seus hábitos e seus laços, nascia Lygia Fagundes, autora-adolescente de "Porão e Sobrado". No primeiro dos espaços alojou as jovenzinhas órfãs, as pajens, enredadas em suas fugas com trapezistas ou tomadas pela dor do aborto forçado. No segundo, uma e outra senhora burguesa, superficiais como podem ser superficiais os textos faltos de distanciamento, mas descritas com toda a sinceridade. "Remexer a alma e a vida dos outros", estabelecera Machado de Assis como a atividade do escritor e, que o senhor não se enganasse, Lygia havia respeitado. Já era isso o que buscava em seus contos de aprendiz.

Eram os anos quarenta de uma Pauliceia ocupada por mulheres de finas luvas e homens parvos de gravata, quando se configurou nela a necessidade de dar novo testemunho de seu tempo. Lygia era uma garota de boina e peixeira a tiracolo, não a faca, a bolsa de couro cru que mocinha alguma dispensava, e não se conformava com o papel secundário das mulheres daquele e de outros momentos. Cercava-se de homens — os atléticos jovens da faculdade de Educação Física em que se formara, os polidos aristocratas do largo de São Francisco, onde ainda estudava — mas não por prazer ou por querer desafiá-los. Queria era garantir seu próprio sustento, e batalhar por um terceiro espaço entre os engravatados: lançou "Praia Viva", nova coletânea de contos, e pôde ver quão a sério estavam dispostos a levá-la aqueles sujeitos engomados.

Mas esses são livros mortos, disse Lygia, e sua voz ressoou por todo o escritório. Se já há algo de mórbido na palavra morte, mais há de haver nas pobres obras que nascem para o esquecimento. Livros são escritos para garantir a permanência, para negar a mais atroz das sortes; não para se perderem no tempo. Ao redor, tudo era silêncio. O ouvinte invisível assistia à cena mudo e expectante, talvez mais distante e mais mudo do que alguns segundos antes. Talvez conhecesse a escritora e soubesse o quanto ela era seduzida pelo mistério que precede cada triste óbito. Talvez intuísse que o que ela tinha agora para contar não podia ser ouvido por espíritos impuros e sórdidos.

Foi por essa época que recebeu a notícia da morte do pai, o homem que lhe ensinara o valor do português e a importância de ver certa graça nas coisas desengraçadas. O homem que lhe apresentara a arte de jogar na roleta, tão semelhante à arte do criar: hoje se perde, amanhã talvez se possa ganhar. O homem sóbrio e erradio que se levantava da poltrona e trocava de lugar toda vez que julgava que um assunto estava terminado. Por que não se levantara, agora? Antes da fatal chegada, por que não encerrara o assunto e mandara a morte se retirar?

Mais tarde, desamparada, Lygia sucumbiu aos atemporais desejos da mãe e se apaixonou por um professor. Casou-se, tornou-se Fagundes Telles. Logo teria um filho, mas antes quis se dedicar a uma outra empreitada. Havia pouco lhe aparecera a menina Virgínia, com sua cabeleira escorrida e o semblante espichado, os olhos rasos e inchados de tanto chorar. Viera lhe contar que tinha de viver distanciada de seu pai, coisa que Lygia soube entender com a máxima profundidade. Passou a encontrá-la todas as manhãs, todas as tardes, escutando e vertendo frase atrás de frase toda uma infância extraviada. De uma história de adultério, loucura, homossexualidade, observou a mácula onipresente da cruel exclusão e encontrou o título que lhe faltava: "Ciranda de pedra". O romance que marcaria a entrada de ambas na maturidade.

Pouco a pouco, o ambiente sombreado foi se iluminando à medida que uma larga faixa de sol ali penetrava, indo incidir justamente na poltrona acolchoada. Lygia emudeceu: parecia mesmo estar vazia. Cortando o silêncio agora mais espesso, caminhou até a janela e pôde olhar para o céu, por um ínfimo instante desanuviado. Do alto daquele prédio da rua da Consolação, cercada de telhados e apartamentos por todos os lados, o mundo se reduzia a um amontoado de concreto, vidro e ferro carente de qualquer orientação. Virou-se. Agora sim estava sozinha na imensidão daquele ermo esp...

Um baque metálico decepou a frase que pensara. Chocando-se contra o chão, a estatueta de estanho que adornava a estante foi parar quase no centro do escritório. Lygia assustou-se, ainda não descobrira a presença inesperada. Esgueirando-se entre as plantas, Lili Cabralina resolveu dar as caras. Lili, sua desastrada!, ralhou com a gata e mandou que voltasse para a sala. A gata fixou nela os olhos de esmeralda e ficou parada. Gatos não obedecem. Às vezes atendem, mas só quando a ordem coincide com sua vontade, e sem aquela instintiva humildade tão natural aos cães. Gatos não são humildes, trazem viva a memória de sua liberdade.

Assim, uns semelhantes aos gatos, outros aos cachorros, são também os personagens. Há os que se submetem a sua sina com modéstia e regularidade, deixando-se levar trama adentro, puxados pela mão, entregues corpo e alma ao narrador entusiasmado. E há os que assumem o controle, temperados, e só mostram as unhas quando muito contrariados.

Súbita a lembrança de Ana Clara. A menina, saltando das páginas datilografadas de "As Meninas", um dia havia resolvido aparecer-lhe em casa. Estava indignada. Como Lygia, depois de tantos meses de convívio, conhecendo com tanta intimidade todas as dores por que ela passara, prestava-se a submetê-la a um fim daqueles? Como tinha a coragem de sem mais nem menos, no meio de seu romance mais importante, descartá-la? Lygia, tal qual a frágil Lorena na mesma cena que narrara, manteve a força e a calma. Seus olhos se encheram de lágrimas, mas não, não podia se entregar a sentimentalidades. Como escritora, naquele instante compreendia, podia até se deixar levar, quase puxada, mas nunca ser comandada.

Olhou para a poltrona desocupada e pôde lamentar: talvez o ouvinte invisível tivesse gostado desse episódio. Suspirou e ia retornando à escrivaninha, as mãos recobrando o impulso de vida, os dedos movendo-se como se estivessem se aquecendo para um exercício, quando uma visão a fez se deter. No canto mais alto de uma esquina das paredes, uma teia de aranha se instalara sem pudor. Não, personagens não são como cachorros e gatos. Personagens são como o inseto que percorre o espaço em voo livre e acaba preso naquela teia, a trama, enleado pelos fios grudentos. Então vem a aranha, a ideia, e nhac!, prende e suga o inseto até abandoná-lo oco, o corpo em estado de estupor.

Nunca se está só, pensou Lygia assim que se sentou à escrivaninha, num misto de consternação e lamento. Não se pode subestimar a capacidade invasiva dos seres. A todo momento, esbarrando nas esculturas, prendendo-se às paredes, infiltrando-se pelas frinchas da madeira, alastrando-se pelo piso sem cera, ocupando as frestas recônditas do cimento, ou as poltronas. Uma força violenta de vida disposta a apagar os últimos vestígios da morte, ou mesmo da matéria indiferente. Criar. Criar cada conto como Deus criou cada ser para compartilhar um átimo da perplexidade do processo criador. Criar para compreender um mínimo dos milhares de signos e símbolos desse mundo indevassável.

Antes de acomodar as mãos e pousar os dedos nelas, pôs-se a contemplar as teclas. Tão inocentes as letras ali impressas, tão descomprometidas. Quase crianças, A, B, H, M, O... Como é impostado o T! Como é esguio o I! Tão raro o X. O sonolento Z, em declínio, usurpado por seu gêmeo bivitelino, o S. Tão inocentes e, no entanto, tão maltratadas, a um só tempo vítimas e armas à mercê dos mal-intencionados. Tantas letras atiradas ao abismo, às latas de lixo, aos esgotos, falsificadas e decompostas, torturadas e encarceradas. Tanta responsabilidade recaindo sobre o imprudente ofício de ajuntá-las.

Mentir ou falar a verdade? Mentir para fazer render o instante, para fazer da página algo mais do que folha neutra e descartável, para buscar a beleza onde ela se esconde, a aventura onde ela não está? Falar a verdade, retratar o real em toda a sua complexidade, dar a ver o mundo fidedigno em sua dignidade, sem sucumbir à grande irresponsabilidade do malversar? Criar. Criar como Deus ou uma criança criam uma bolha de sabão: imprecisa, nem sólida nem líquida, nem realidade nem sonho, película e oco. Inventar. Inventar com a secreta esperança de estar inventando certo.