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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Elogio ao futebol, no tempo dos espectadores desiludidos

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Imagem: iStock

02/04/2022 06h00

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Drummond certa vez afirmou, numa esquecida carta a um amigo, que as maiores emoções de sua vida ele viveu com uma caneta na mão. Quem dera um dia eu possa fazer semelhante declaração, possa sentir que da escrita saltaram meus afetos mais sinceros, que escrevendo me alegrei, me espantei, me comovi, me condoí. Mas enquanto não chega o dia dessa afirmação superlativa, talvez me caiba admitir com resignação: algumas das maiores emoções que senti na vida se deram com os meus olhos vidrados numa bola de futebol. Como devotado partícipe de pelejas amadoras, ou como ávido espectador dos grandes jogos de uma época, cometo a ousadia humilde de dizer que, pelo futebol, vivi.

Se agora resolvo afirmar isso é por notar ao meu redor muitos que já não se encantam, não se iludem, não querem submeter seus corpos ao impacto de uma lépida pelada entre amigos, não sentem euforia ante um jogo da seleção, e já nada sabem dos times que uma vez defenderam com fervor infantil. O que era paixão nacional pode ter se tornado distração pueril de alguns incautos, prova de futilidade e alienação. Peço perdão, mas não consigo pensar assim, e sobretudo não o consigo sentir. Basta uma ligeira melhora no Corinthians, bastam umas poucas jogadas bonitas de uns jovens brasileiros para que eu passe madrugadas vendo melhores momentos, revisitando velhas partidas, editando a cada vez uma nova antologia de memórias afetivas. Também as emoções futuras me interessam, mesmo quando envolvem risco: neste exato ponto paro o texto para assistir ao sorteio dos grupos da Copa... e volto agora tomado de ansiedade, projetando embates épicos contra Sérvia, Camarões, Suíça.

Não me julguem ingênuo. Sei bem que o espetáculo se fez mais midiático que esportivo, conheço a perversão que toma os grandes escalões do ludopédio, li muito sobre as complexas relações entre futebol e política. Dos meus pais sempre ouvi sobre a aflitiva ambivalência que viveram em 1978, exilados no Brasil, vendo a ditadura argentina fazer daquela Copa uma celebração do horror e do arbítrio, e ainda assim rendendo-se eles próprios, contra a razão, a gritos furtivos pelos gols de seu país. Sei que agora e aqui vivemos algo parecido, pelos homens nefastos que nos governam e pela inconveniência de seus símbolos. Mas se engana quem vê no uniforme da seleção apenas as camisas amarelas que, em anos recentes, tomaram as ruas com sua sordidez e seu desvario. Há algo mais na camisa, há mais histórias do que essa que quis se fazer única e impositiva.

Ainda assim, confesso que me vejo em dificuldades a cada vez que minha filha se aproxima durante um jogo qualquer, perplexa com a minha atenção excessiva, e pergunta com a sinceridade de seus cinco anos incompletos: "Mas, papai, que importância tem isso?". Explico sem pressa que são as finais do Paulista, ou as eliminatórias da Copa, tento criar expectativa anunciando o maior torneio do mundo que vai acontecer no fim do ano, mas ela insiste: "Não, papai, que importância tem o futebol? O que ele muda, o que acontece quando o jogo termina?" E então meus ombros desabam e eu desisto, não tem importância nenhuma, filha, é só um jogo, uma brincadeira multitudinária sem nenhum sentido.

Depois sofro por ter traído a mim mesmo e aos meus sentimentos. Penso em chamá-la de volta e soltar a tão conhecida citação de Nelson Rodrigues, dizer que, "no futebol, o pior cego é o que só vê a bola", garantir que há ali muito de invisível e de inaudito, que nele se escondem histórias exuberantes e belezas recônditas. Dizer, com Eduardo Galeano, que diante do futebol "a cidade desaparece, a rotina se esquece", e só resta aquilo, só restam vinte e dois pequenos sujeitos que correm e se esbatem e assim encenam o drama da existência humana, o drama comum a todos.

Mas não a chamo de volta, não quero me fazer insistente e retórico, e de repente me vejo tomado por uma série de lembranças que são também reminiscências físicas, e sinto no corpo os momentos em que acompanhar futebol e jogar futebol e viver a vida se aliaram e se confundiram. Da pelada raivosa sob a chuva que travamos logo depois da derrota de 1998, cada um de nós tentando redimir com nossos chutes a apatia da seleção a que acabávamos de assistir. Da festa ruidosa e catártica em que fui parar logo depois do trágico 7 a 1, onde brasileiros dançavam e cantavam com inesperada energia ante o olhar estupefato dos estrangeiros. E como esquecer da Copa de 2002, em que a cada jogo eu me encantava com a atuação brasileira ao mesmo tempo em que me apaixonava por uma mulher, a mulher com quem vivo até hoje, vinte anos depois.

Há quem tenha pena de Drummond, quem lamente a solidão reclusa de suas emoções, como se sua declaração provasse uma indisposição com a vida, uma entrega insuficiente ao mundo. Contra esse argumento, o sensibilíssimo Alcides Villaça já trouxe a palavra definitiva, exaltando, entre as tantas formas de se atirar à vida, "a de se valer de uma consciência aguda e de um lirismo devastador para escrever poemas carregados das falas humanas mais urgentes e precisas de uma época." Tanto assim o futebol não me oferece, mas a ele sou grato em igual medida, e por isso peço que também não se apiedem de mim. De suas emoções, o mínimo que posso dizer é que têm sido prazerosas, autênticas, imprevisíveis, vivas.