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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Centenário do Ulisses: a celebração de uma literatura livre e coletiva

O escritor James Joyce - Arquivo
O escritor James Joyce Imagem: Arquivo

Colunista do UOL

26/03/2022 06h00

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Algum grau de presunção é imprescindível a qualquer criação artística. Quem cria precisa crer na importância do que tem a dizer, e em sua capacidade de dizê-lo de maneira única, singular, irrepetível. Quem cria precisa crer também que alguém estará lá para ouvir. James Joyce, tendo escrito a enormidade de seus livros, acreditou que teria dado aos leitores e críticos trabalho suficiente para os trezentos anos seguintes. Foi um dos comentários mais presunçosos da história da literatura, sim, mas talvez também um dos mais clarividentes. Foram-se já cem anos desde a publicação de "Ulisses", e continuam intensos os esforços para compreender sua dimensão, para destecer sua obra costurada em filigranas infinitas.

Celebrar James Joyce já chegou a ser um ato de desforra. Ao longo de sua carreira tumultuosa, o grande autor irlandês enfrentou as privações comuns à maioria dos escritores: o desinteresse, o desprezo dos outros, o desalento pessoal. E enfrentou também algumas agruras bastante próprias: o autoexílio, a censura, a acusação constante de imoralidade, a rejeição progressiva até dos que antes o admiravam. Celebrar Joyce passou a ser, então, contrariar uma visão estreita e retrógrada de arte, marcar posição por uma abertura criativa e moral. Passou a ser, sobretudo, a defesa de uma suma liberdade: do direito que tem a literatura de ser baixa, escatológica, popular, e ao mesmo tempo, quase paradoxalmente, de seu direito ao hermetismo e à complexidade, seu direito à falha, à ineficácia, ao naufrágio do sentido.

Ainda faltam duzentos anos de leitura e decifração, mas já é possível dizer que no primeiro centenário entendemos sua novidade e seu radicalismo. A obra é infinita, mas nesta única e sinuosa sentença talvez caibam suas duas maiores contribuições literárias: o uso sistemático do monólogo interior, numa exploração nunca antes vista dos meandros da consciência humana; e a instabilidade total de seu estilo, num constante vaguear entre as maneiras possíveis de escrever o mundo. Mas dizer algo assim não o esgota em absoluto, e para celebrar Joyce convém passar a festejar algo mais despercebido: a grandeza também da atenção à sua figura, a extraordinária comunidade que tem feito de Joyce um pretexto para explorar os limites da literatura. Celebrar assim já não é desforra nem culto desmedido, e sim um singelo ato de dedicação comum à potência artística.

Raras vezes se está tão bem acompanhado quanto na leitura de uma página de "Ulisses". É com aspereza que o autor nos conduz pelas ruas sombrias de Dublin e pelas mentes sombrias de uns tantos dublinenses, e o sentimento predominante pode ser o de estarmos perdidos, vulneráveis ao caos de pensamentos, frágeis ante o desmantelo da razão e da língua. Entregar-se em solidão a esse universo hostil pode ser uma experiência assustadora e inquietante, fadada à desistência precoce. Mas são fartas as companhias possíveis nessa travessia por suas quase mil páginas, pois há muitos outros milhares de páginas de guias, anotações, resumos, críticas, revelações prescindíveis ou imprescindíveis. À voz de Joyce se somam essas centenas de outras, e em pouco tempo já não estamos tão perdidos, ou ao menos não estamos tão sós.

Para mim, essa impressão nunca foi tão vívida quanto agora que me engajei num projeto insólito: uma nova tradução do "Ulisses" feita a dezoito vozes, um tradutor diferente para cada um de seus capítulos. Lentamente, "um espaço mínimo de tempo por tempos mínimos de espaço", fui avançando pelas linhas pedregosas dessa narrativa, batalhando novas curvas para conversões impossíveis, criando um caminho inevitavelmente meu que, numa improvável coincidência, devia coincidir ao máximo com aquele percorrido por Joyce. Mas nem por um instante caminhei só, e isso é importante: o tempo inteiro me vi acompanhado por outros leitores, outros críticos, outros tradutores, por infindáveis decifradores dessa obra aberta e coletiva.

Integrar uma equipe de tradutores fez do exercício literário algo muito mais comunitário, abriu um vozerio no silêncio do meu escritório. E a experiência foi mais marcante porque me vi mancomunado não só com meus companheiros dessa nova edição, capitaneados por Henrique Xavier, mas também com os tradutores de edições passadas, com Antônio Houaiss, Bernardina da Silveira Pinheiro, Caetano W. Galindo. Joyce é um autor formidável, sim, mas que trabalho primoroso têm feito os seus tradutores, com sua capacidade de alcançar, cada um deles, uma expressão única, singular e irrepetível da obra primitiva. Cada um à sua maneira traz, a um só tempo, uma interpretação própria de cada frase e uma fiel assimilação de sua intenção e seu sentido. Será motivo de grande orgulho se a nova edição cumprir também essa sina.

Quem dera toda a literatura contasse com um empenho desses, com esse ímpeto gregário e festivo. Teríamos uma literatura muito mais viva, mais alegre, mais complexa, mais livre, se os escritores não temessem tanto a incompreensão, a indiferença, o fatal desinteresse. Esse destemor não é missão exclusiva daqueles que hoje escrevem: é missão também dos que leem, dos que decidem se aceitam ou não os livros que chegam às suas mãos, se devem se entregar ou não à vulnerabilidade inevitável da leitura. Dessa dedicação depende toda a literatura, toda a arte talvez: desse ato de confiança na profundidade da experiência, e na capacidade humana de transformá-la em palavras.