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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

As dores do mundo: por que comparar tragédias pode ser um embrutecimento

18.mar.2022 - Militar da Ucrânia caminha próximo a prédio danificado por bombardeio - REUTERS/Vladyslav Musiienko
18.mar.2022 - Militar da Ucrânia caminha próximo a prédio danificado por bombardeio Imagem: REUTERS/Vladyslav Musiienko

Colunista do UOL

19/03/2022 06h00

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Uma pianista ucraniana abre seu piano, limpa a poeira com o dorso das mãos e se põe a tocar seu último Chopin antes de deixar tudo para trás, antes de se tornar uma refugiada. A câmera vai se afastando com lentidão e mostrando o espaço onde ela está, a destruição manifesta em cada detalhe, nas portas lançadas ao chão, nas pilhas de objetos indecifráveis, o caos instalado dentro e fora da casa, territórios agora indistintos através das janelas estilhaçadas. Na sala arrasada pelos ecos de uma bomba que explodiu muito perto, agora só se ouvem as notas delicadas, a música a aguçar os sentidos ante a violência da imagem, a acentuar nossa sensibilidade para a dor, a perda, o desastre.

Por dois minutos acompanhamos essa mulher e sua tristeza, essa mulher e sua arte. Depois fechamos o vídeo e vamos nos deparar, sem nenhum lapso temporal, com comentários enfáticos que condenam nossa comoção, que desautorizam todo alarde, que desprezam a dor da mulher comparando-a com as dores mais extremas de outras guerras, outros países, outras casas. E das famílias afegãs, e dos resistentes iraquianos, e dos milhões de refugiados palestinos, acusam essas frases de dedo em riste, quantos vídeos você chegou a ver, quantas músicas ouviu, quanto se condoeu? Num instante, a comoção deu lugar a um debate acalorado: desapareceu a pianista que contemplávamos e só sobrou uma discussão sobre a magnitude das perdas, sobre mortes maiores e menores, sobre tragédias que merecem ou não merecem esse nome.

Pode haver algum sentido, afinal, em comparar quantitativamente as dores, em hierarquizar calamidades? Será essa uma maneira válida de confrontar narrativas alardeadas demais, e de indagar causas, culpas, responsabilidades? Há momentos em que, de fato, é pertinente a crítica à atenção desigual que os veículos de informação dedicam a umas e outras guerras, a umas e outras catástrofes. Muitos já apontaram com exatidão: há um flagrante racismo no enternecimento maior que provocam as dores de uma parte da humanidade, quando o desastre alcança famílias europeias e norte-americanas. A comoção maior com a dor branca é sem dúvida uma dimensão a mais, agora simbólica, das iniquidades arraigadas que regem a nossa existência no mundo.

Vale ressaltar, ainda, que as consequências dessa diferença de tratamento não se limitam à dimensão simbólica. Como informou com precisão Jamil Chade, o horror provocado pelos ferozes ataques russos às cidades ucranianas, e a atenção midiática que a guerra tem suscitado, geraram uma impressionante onda de doações à ONU para o cuidado dos refugiados ucranianos. Seria uma boa notícia, sem dúvida, se não acabasse por revelar também o abandono a que estão submetidos outros tantos refugiados, a desatenção quase absoluta a outras crises humanitárias, como as vividas neste momento no Iêmen, no Líbano, em El Salvador, em Moçambique. Olhar para o mundo em perspectiva, nesse caso, é um gesto fundamental, que procura combater desigualdades e apontar falhas estruturais dos nossos sistemas de informação e da vida numa comunidade planetária.

Mas há algo de problemático quando, confrontados com a dor, testemunhando um sofrimento a um só tempo coletivo e pessoal, preferimos mudar de assunto, preferimos relegar a vítima ao silêncio. Contrapor tragédias pode ser necessário em alguns contextos, mas em outros se converte num embotamento de sentidos, no crescimento de uma indiferença. É um problema e um sintoma essa disposição tão imediata em saltar para outro espaço e outro tempo, essa urgência de calar o presente. Em cada um desses comentários parece se expressar uma fuga, uma recusa a ver e a compreender a gravidade do que vemos, um embrutecimento para a dor que temos bem diante dos nossos olhos.

E o problema se agrava ainda mais quando esse movimento retórico serve para justificar um mal, para naturalizar uma guerra. Quando se passa a acreditar que uma dor anula outra dor, compensa outra dor, faz dela uma dor merecida. Nada na história da humanidade torna razoável um raciocínio como esse. Muito mais sentido há em conceber as vítimas como vítimas comuns de um mesmo confronto, atemporal e indefinível, vítimas de um só regime de ganância e violência. Toda dor revelada com sensibilidade e agudeza deveria nos despertar para as outras dores do mundo, para os inumeráveis sofrimentos que ainda não vimos, que ainda não conhecemos.

"Não há sangue dos outros. Em cada um que sangra todos nós esvaímos", quem escreve é Mia Couto, obrigando-nos a lembrar seu esquecido Moçambique. A tragédia moçambicana é uma tragédia africana, é uma tragédia do mundo inteiro. Há uma continuidade das ruínas do mundo, todas derivadas de uma mesma exploração, uma mesma intolerância, uma mesma pulsão de morte. Todas manifestações clamorosas da incompreensão do outro como sujeito que merece a vida e a liberdade. Nenhuma outra dor poderia diminuir a dor que agora testemunhamos, pois ela deveria doer em cada um de nós, ela é a dor da humanidade.