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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Elza Soares e sua capacidade de nos assombrar até o fim

Elza Soares na Sapucaí, em 2020 - Lucas Landau/UOL
Elza Soares na Sapucaí, em 2020 Imagem: Lucas Landau/UOL

Colunista do UOL

29/01/2022 06h00

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Não me esqueço, acho que nunca me esquecerei da visão de Elza no palco, a derramar sua eminência sobre mim, sobre cada um de nós. Um segundo antes parecia a mulher mais frágil, chegara de cadeira de rodas, tivera que ser lentamente erguida até aquele posto por dois homens. Não vai haver show nenhum, pensei, ela não tem condição. E então a luz acendeu sua cabeleira dourada e me cegou, e seu vestido longuíssimo cobriu os degraus de seu pedestal, e ela pairou alto no teatro, rainha em trono irreal. Nem precisava da voz, mas a voz nos atravessou com potência inesperada, a falar de lágrimas, de um choro que não era nada além de carnaval, e a prometer com teimosia abissal: "eu quero cantar até o fim, me deixem cantar até o fim, até o fim eu vou cantar, eu vou cantar até o fim." E no fim quem cantava éramos nós, todos nós, e eram nossas as lágrimas, era também nosso o choro dela de carnaval.

Não tenho muito mais a contar, o que conto já viveram milhares, milhões já se abismaram diante da força de Elza Soares. Nos textos de sujeitos bem mais informados do que eu, mais hábeis e mais ágeis em celebrá-la, vejo reiterada a mesma história de Elza, mulher magérrima vinda do planeta fome para espantar os homens com a crueza de sua garganta, com sua beleza insólita, com seu magnetismo raro. É como se a cada vez que subisse ao palco, cogito embalado pela memória, ela reencenasse sua aparição no mundo do espetáculo, provocasse nossa desconfiança besta, nossa incredulidade estúpida, para então revelar de novo e de novo sua grandiosidade. E o que assim revela, sinto, não é o seu próprio fulgor, sua condição de artista singular, mas também a grandiosidade possível a toda música, a toda arte, em sua infindável capacidade de nos surpreender e nos assombrar.

Ainda me lembro, pode ser que aqui cometa uma inconfidência, ainda me lembro do enorme estranhamento que a figura de Elza provocava em mim quando criança. Eu não sabia nada do mundo, não entendia nada do Brasil, como ainda não entendo. Aos meus olhos de menino quase estrangeiro, aquele rosto meio indígena meio negro, sumamente brasileiro, embora mil nações o tivessem moldado, aquele rosto era incomum e inquietante como poucos outros, me mantinha vidrado e ressabiado a um só tempo. Da voz seria possível dizer o mesmo, da rouquidão, das quebras de ritmo, dos efeitos guturais que estremeciam meus ouvidos ingênuos. Se aquilo era o Brasil, talvez eu chegasse a temer, seria para sempre um país estranho e incompreensível.

E, no entanto, para minha própria surpresa, com os anos o que era inquietude se converteu em algo bem mais próximo do fascínio, do encantamento. O que era incompreensão não se desfez de todo, mas ganhou o matiz de uma admiração extrema, e me aliou a uma multidão de outros que, agora sei, sentem uma idêntica emoção diante de tudo o que venha de Elza. Como foi que essa mulher de noventa anos, essa mulher que foi uma infinidade de mulheres, que atravessou as décadas renascendo seguidas vezes, como foi que ela se transformou na voz mais poderosa a encarnar uma geração tão distinta da dela? Como foi que ela se fez timbre da nossa resistência, de toda a nossa resistência, não só a das mulheres negras, mas a dos muitos que sentem o dever de se erguer contra a violência e a obscuridade do nosso tempo?

Não tenho resposta nenhuma, trago só minha perplexidade perene diante dessa mulher, e minha gratidão profunda. Graças a Elza me sinto mais distante do menino cismado que fui, me sinto um homem mais próximo da minha época e da multiplicidade que me cerca, mais capaz de me fundir à massa de vozes e cantar coletivamente. E ouvindo Elza, em todas as ocasiões, acompanhado ou sozinho, compenetrado ou distraído, pude viver sempre uma sensível comoção, ou uma distinta história de arrebatamentos. Guardo essa história comigo para que um dia alimente, eu fome, eu frágil, meu próprio desejo de cantar até o fim, minha sanha de cantar até o fim, minha necessidade de cantar até o fim, neste fim do mundo que nos mantém tão alertas.