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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Como pedra ou como morro, o país desmorona aos nossos olhos

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

15/01/2022 06h00

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São fortes as imagens que marcam este início de ano, tão alarmantes quanto simbólicas. Todos as vimos, elas inundaram as telas à nossa volta como uma enxurrada avassaladora, alastrando-se pelos jornais, abrindo caminho entre desastres já numerosos. Uma pedra monstruosa se desprende de uma encosta e desaba ruidosamente sobre um rio, engolfando lanchas próximas, matando dez pessoas. Um morro se corrói árvore por árvore em velocidade, gerando uma onda verde e marrom que em poucos segundos envolve um casarão secular e, como se uma maquete fosse, o desmonta, o desmancha, o destrói.

Sou como muitos, volto seguidas vezes a essas gravações impressionantes - num impulso talvez mórbido, mas não só, num impulso menos condenável que permanece insaciado. Como se ali houvesse algo mais a entender, algo a decifrar. Sua estética nos é bem conhecida nestes tempos de testemunho imediato da calamidade. Elas nos colocam entre as mãos trêmulas de quem grava as imagens, oscilando entre o chão e o acontecimento maior, partilhando o espanto e a hesitação de quem não sabe se deve se proteger ou contemplar o horror. O registro amador produz, como o cinema já soube assimilar, um efeito poderoso de realismo e dramaticidade.

Nos dois casos, porém, há uma nuance pouco típica dos vídeos a que estamos acostumados. Na gravação habitual dessas ocorrências atrozes, o acontecimento extremo atravessa a vida comum, impõe-se sobre a tranquilidade, fere o ordinário por seu contraste. Nesses casos recentes, não. Em todas as suas gravações disponíveis, tudo já é alarde antes que aconteça o desenlace fatal, tudo já desmorona vastamente antes de tombar e sepultar o caos. São tragédias anunciadas, inclusive pelas vozes escandalizadas dos que produzem as imagens. São tragédias precedidas por palavras que poderiam ao menos atenuá-las, ao menos impedir que se concretizasse o pior.

Pensá-las assim é retirá-las do âmbito da fatalidade, do desastre natural imprevisível e irremediável. Tanto o episódio de Capitólio quanto o de Ouro Preto conformam-se mal à definição de acidentes. Num país em estado de normalidade, inspeções teriam vetado a continuidade do turismo num cânion em erosão, diligências teriam construído uma barreira que impedisse o morro de se investir contra a cidade. Num país em estado de normalidade, tais imagens não existiriam: não passariam de iminências sinistras, de riscos a serem vigiados.

Mas não é por essa específica irresponsabilidade oficial que insisto em retornar às imagens, em examiná-las contra a minha própria vontade. Algo maior elas revelam, algo que se faz emblema de uma situação muito mais vasta. O que nelas vemos é um registro metonímico do país, um retrato enfático do momento que vivemos como sociedade. Como pedra ominosa, o país vai se descolando de qualquer base estável, ou vai se corroendo numa enxurrada verde e marrom que poderia nos devastar, que poderia atingir a todos e a cada um de nós. Diante dos nossos olhos arregalados, não é uma pedra que desaba, não é um morro, é todo um país que vem abaixo alheio aos gritos de alarme.

Já há alguns anos, são as nossas vozes escandalizadas que narram as imagens, que gritam o temor e a morte, que alertam para o risco de uma queda ainda mais estrepitosa. Somos todos testemunhas desse desastre capital, estupefatos também com a persistência dos desavisados, ou dos indiferentes à extrema gravidade da situação. Talvez agora nos reste pouco a não ser gritar de novo a nossa indignação, e tratar de acudir as vítimas presentes e futuras dessa calamidade pública em que se converteu o Brasil. Mas de seus tristes escombros construiremos, num dia que já se aproxima, um país mais humano e mais sensível.