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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Resistir aos homens bestiais: esse é o desafio no ano que se abre

Em uma parábola, Saramago conta sobre uma vaca que se perdeu numa montanha com seu filhote - iStock
Em uma parábola, Saramago conta sobre uma vaca que se perdeu numa montanha com seu filhote Imagem: iStock

Colunista do UOL

08/01/2022 06h00

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Finalmente entendo, neste ano extremo que se abre, neste ano que terá como marco intransponível uma decisão de vida ou morte, de trégua ou violência, de uma mínima tranquilidade ou o agravamento do caos, finalmente entendo uma parábola sobre resistência que li muitos anos atrás. Consta em "A viagem do elefante", de José Saramago, mas não guarda muita relação com o paquiderme simpático: narra em vez disso a insólita e surpreendente história de uma vaca.

Uma vaca que se perdeu numa montanha com seu filhote, e que por doze dias e doze noites teve de suportar o frio, o gelo, a lama, o mato cortante, as pedras afiadas como navalhas. Uma vaca que se viu cercada por lobos ferozes e, numa longuíssima batalha no limiar da morte, protegeu a si e ao filho das goelas abertas e do círculo de dentes. Ao fim dos doze dias, a vaca foi encontrada e salva, e assim devolvida à aldeia em que até então pastava. Ali, passo a palavra a Saramago, "porque se tinha tornado brava, porque aprendera a defender-se, porque ninguém podia já dominá-la ou sequer aproximar-se dela, a vaca foi morta, mataram-na, não os lobos que em doze dias vencera, mas os mesmos homens que a haviam salvado, talvez o próprio dono, incapaz de compreender, que, tendo aprendido a lutar, aquele antes conformado e pacífico animal não poderia parar nunca mais."

A história em si deveria bastar, mas, como me cabe contribuir em algo para o seu sentido, passo ao imprudente exercício de tentar aproximá-la da nossa realidade. Fustigados pelas mais duras tempestades, destratados e tiranizados por brutos e selvagens, injuriados seguidas vezes por ações e palavras ferozes, parece evidente que sejamos nós o ruminante de Saramago, ou que seja o nosso país a vaca dessa história. Nossos últimos anos guardam estranha equivalência com aqueles doze dias e doze noites de martírios e provações reiteradas, nos exigindo a mesma tenacidade da vaca, sua força, sua resistência. Acho que temos nos tornado bravos, inevitavelmente, ambiguamente, acho que temos aprendido a suportar as mais doloridas severidades.

Quem são os lobos nessa história não é difícil determinar. Raras vezes este país se viu com tanta clareza cercado por animais raivosos, governado por animais raivosos, por seres de violência intrínseca e fome insaciável que desejam devorar sua carne e dilapidar sua carcaça. Se o país tivesse corpo, já teria sofrido a esta altura mordidas graves, já veria o sangue rubro a manchar seu couro malhado. Os lobos ocupam posição de poder e vantagem, e poderiam a qualquer momento dar o bote fatal, mas já sabemos que podemos vencê-los e dispersá-los, mesmo que por vezes pareçamos nada mais que mamíferos pacíficos e conformados.

O último movimento da parábola é que pode gerar maior incompreensão, ou dar mais trabalho para decifrar. Quem são os homens que deveriam salvar a vaca, e que no entanto acabam por matá-la sem piedade? Esses homens, ora, talvez sejam os tantos sujeitos inermes e pacatos que encontramos ao nosso redor, os que alguma vez acharam que era razoável deixar proliferar os lobos, e entregar a eles o poder sobre a montanha, os que por qualquer estúpida razão podem voltar a repetir um juízo tão equivocado. Esses homens também são parte de nós, são o nosso país, a parte do país comprometida com sua própria destruição, sua aniquilação, sua desgraça.

Por ora vamos resistindo aos lobos, mas não sei se seremos capazes de resistir caso a violência se estenda por quatro anos mais. Como não somos vaca, como somos dotados de linguagem, ainda podemos nos valer das palavras para denunciar o disparate de toda essa história, e convencer que não o façam, homens bestiais, que parem de alimentar os animais ferozes que querem nos matar. Não sei se aprendemos a lutar, mas sei que, depois destes anos selvagens, não poderemos parar nunca mais.