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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

A multiplicidade que somos, divididos entre seres olímpicos

Menina brinca de levantar pesos - Chinnapong/Getty Images/iStockphoto
Menina brinca de levantar pesos Imagem: Chinnapong/Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

07/08/2021 06h00

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Primeiro ela determinou que seria ginasta, depois que seria surfista, nos dias seguintes jornalista, cavaleira, skatista. Fui notando alguma ironia nesses planos assertivos, é impressionante como aprendemos cedo a ser irônicos, e então vamos esquecendo, vamos nos conformando com a sisudez. Mas notei sobretudo a seriedade de cada decisão, expressa no tom firme, na testa franzida, a convicção com que ela assumia para si cada desejo fortuito, cada visão efêmera. E fui admirando a liberdade com que minha filha concebe a sua própria vida, fui eu mesmo desejando essa abertura total ao futuro, essa recusa aos limites da razão e da sensatez.

Viver assim, conceber assim a grandiosidade do presente, e a infinitude do futuro, é algo lúcido quando se tem quatro anos de idade, mas bastante desorbitado quando se beira os quarenta. E, no entanto, embora não o alardeie casa afora, embora prefira silenciar os meus anseios, também eu tenho experimentado nestes dias uma pluralidade íntima, tenho sido muitos, tenho nadado, remado, cavalgado, tenho levantado pesos, arremessado discos e dardos. Como o técnico de vôlei da seleção francesa que não se conteve e saltou na quadra para impedir o ponto adversário, me vejo seguidas vezes a mergulhar no tapete da sala, em lances súbitos e milagrosos. Isso, é claro, sem que meu corpo se mova um centímetro da minha posição cativa no sofá.

Eu, que sempre me quis homem sério e centrado, sujeito uno e indivisível, me estilhaço então em múltiplos corpos, sou feito de outros e seus ofícios. Entendo enfim aquilo que Antonio Tabucchi, ou um de seus personagens, definiu como a "confederação das almas": essa multiplicidade de seres que somos dentro de nós, e que diariamente se batem e se debatem, disputando ponto a ponto um intangível espaço. "Acreditar ser um, separado da incomensurável pluralidade dos próprios eus", dizem esses homens, "representa uma ilusão, aliás, ingênua". E se dentro de mim sou muitos, e é ilusão conceber a mim mesmo coerente e íntegro, por que não posso também eu querer ser ginasta, surfista, cavaleiro?

Já há tempos, admito agora para mim, venho sendo um sujeito partido, indeciso entre pendores conflitantes. Quem me acompanha nestes textos sabáticos já viu que vacilo sem equilíbrio entre o sério e o lírico, entre o político e o reflexivo, e me aventuro sem licença pelo literário, o sociológico, o psicanalítico. Há semanas em que consumo avidamente as notícias deste país em colapso contínuo e depois elas empapam tudo o que tenho a dizer, torno-me um sujeito jornalístico. Outras vezes fico saturado de notícias, não aguento mais esses homens primários que nos exigem o eterno retorno ao elementar, à esfericidade do planeta, ao valor da vida, da democracia. Assino então um exasperante manifesto em defesa do sistema eleitoral, e corro para me alienar, para me fazer poético ou esportivo.

A confederação de almas que nos habita, seguem Tabucchi e seus duplos, "se coloca sob o controle de um eu hegemônico", mas esse eu não detém um mandato vitalício. Pode acontecer de se insurgir um outro eu, que nos visita em momento imprevisto e nos põe a pensar coisas que nunca pensamos, e fazer coisas que nunca fizemos. Quase sempre essa presença indômita provoca inquietude, e nos faz presumir que estamos perdidos, que estamos em crise. Se esse outro é forte o bastante, toma o poder do primeiro e então nos vemos já não cindidos, mas transformados, estranhos ao que éramos há tão pouco tempo.

Não temo ser tomado de assalto pelo meu ser ginasta ou cavaleiro, não temo a esta altura me tornar surfista suponho que esses seres internos se desvanecerão em poucos dias, quando terminarem os jogos. Mas por vezes sinto um discreto receio do sujeito ocioso que assume os meus dedos algumas sextas-feiras, e quer fazer de mim um cronista do vago, do incerto, do indolente. Com seu domínio, minha retórica se fragiliza e perde qualquer possibilidade de persuasão ou engajamento, e qualquer clareza na interpretação do mundo. Ainda assim, não luto contra ele, deixo que escreva a minha coluna só mais esta vez, porque minha filha decidiu ser saltadora ornamental, e preciso me tornar agora seu trampolim e seu técnico.