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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O primeiro cosmoturista, e o vazio que poderia devorá-lo

Jeff Bezos cumprimenta equipe da Blue Origin após deixar cápsula que acabou de aterrissar do espaço - Blue Origin/AFP
Jeff Bezos cumprimenta equipe da Blue Origin após deixar cápsula que acabou de aterrissar do espaço Imagem: Blue Origin/AFP

Colunista do UOL

24/07/2021 06h00

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Era tempo de celebrar a iminente chegada da humanidade à Lua, quando Gilberto Gil viu necessário exortar poetas, seresteiros, namorados, a escrever e cantar talvez as derradeiras noites de luar. Ele também estava contente com o feito, não podia deixar de confessar seu espanto com a nova guerra de astronautas, e com o homem que lá se foi conquistar os mundos, buscando a esperança que aqui já se foi. Mas não negava sua ambivalência, sua preocupação de conhecer a lua e então perdê-la, de não ter mais nenhuma lua para clarear suas ideias. "O que será do verso sem luar? O que será do mar, da flor, do violão?"

Triste sina a do cronista cujo tempo não lhe permite narrar a chegada do ser humano à Lua, mas sim o primeiro passeio de um bilionário qualquer aos limites da atmosfera. Nem resquício do acontecimento grandioso, ou da possibilidade do inefável, do sublime. Só o que lhe resta é a pouco afável realidade: um só homem vendeu tanto, explorou tanto, acumulou tanto, que pôde construir para si um brinquedo tão potente quanto um foguete e assim chegar ao espaço, retornando não sei se são, mas salvo. Por esse passeio, por esse excesso, diz o tal homem, pagamos todos, pagaram os seus trabalhadores. Só isso há de coletivo no empenho: o resto é individualismo e consumo. Triste sina a de quem queira procurar aí alguma beleza, ou a complexidade desejável de uma ambivalência.

Na falta do orgulho ou do espanto, um cronista mais hábil poderia se esbaldar na fartura de elementos ridículos presentes nessa história, como na figura do outro homem que pagou dezenas de milhões por um lugar na astronave, e chegado o momento preferiu alegar compromissos mais importantes. Mas eu, que não consigo ser cômico, me limito a registrar o que há de patético em todo esse intento, quão pouco admirável ele se mostra à nossa sensibilidade, quão indigno dos nossos suspiros e dos nossos anseios mais sinceros. Um homem foi ao céu por onze minutos, aliviou-se de seu próprio peso por quatro minutos, e então desceu à terra ainda carente de qualquer experiência.

Penso na distinção fundamental que fez Cecília Meireles entre o viajante e o turista. O turista é "uma criatura feliz, que parte por este mundo com a sua máquina fotográfica a tiracolo, o guia no bolso, um sucinto vocabulário entre os dentes: seu destino é caminhar pela superfície das coisas, como do mundo". E a poeta-cronista continua, corrosivamente: "Os olhos do turista são sua máquina. Como se não soubesse ver as coisas diretamente, e sim através de sua reprodução." Penso nessa nova figura do cosmoturista — por ora um sujeito excêntrico, mas logo o mais comum dos ricos. Seu destino será se afastar da superfície da Terra e assim também de qualquer profundidade. Viajar ao céu e nada compreender, nada ver de fato, tirar uma selfie pela janelinha e postá-la mais tarde com uma frase de efeito, já ouvida muitas vezes.

O viajante, ainda por Cecília Meireles, é um sujeito de movimentos lentos, "todo enredado em afetos, querendo morar em cada coisa, descer à origem de tudo, amar loucamente cada aspecto do caminho". Onze minutos jamais lhe seriam suficientes para observar coisa alguma. O cosmoturista já tocou o espaço e voltou, enquanto o viajante nem começou a percorrer uma rua, a contemplar um rio, a subir uma colina. Continua ali absorvido em sua pequenez, "aprisionado, inerme, sem máquina, sem prospectos, sem lápis, só com os seus olhos, a sua memória, o seu amor." Leio essas palavras e invejo como nunca o viajante, em sua distração resoluta, em sua capacidade de se alienar dos rumores do mundo, e assim conhecê-lo intimamente.

Ao cosmoturista talvez interessasse tocar o desconhecido, alcançar o nunca antes alcançado, viver uma aventura inédita — mas nada disso lhe é oferecido a não ser na brochura. A aventura é só simulacro numa experiência em que cada gesto está administrado e previsto. Ao viajante, por sua vez, interessa pouco o inabitado. Pelo contrário, o que o atrai são os corpos infindáveis que ali passaram, e as marcas que deixaram, os vestígios desses corpos em cada detalhe, tudo aquilo que compõe a história de um lugar. Ao viajante, o vazio do espaço é de um tédio intolerável.

Pouco mais de quatro minutos você demorou para ler este texto. Perdeu-os, decerto, não lhes valeram a pena. Mas suspeito que aqueles que viajaram à bordinha do espaço também tenham perdido seus milhões e seus minutos, mesmo que sejam capazes de recordá-los pela vida inteira. Recordarão um nada, uma ausência de peso. Com alguns dólares a mais, talvez consigam um diploma de astronauta para pendurarem à parede, preenchendo assim o vazio que poderia devorá-los a qualquer momento.