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Julián Fuks

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

A vida em anticlímax: a eficiência eletrônica e seu déficit narrativo

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

03/07/2021 06h00

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Fui a Araraquara fechando a porta do escritório, percorrendo num só gesto centenas de quilômetros. Não sofri pelo caminho nenhum imprevisto, nenhum percalço. Conversei pela primeira vez com um crítico literário que prezo muito, cujos textos sempre me movem. Vi apenas o seu rosto e o rosto da mediadora. Do público, vasto ou escasso, traço nenhum, nenhum relance, ninguém a cruzar as pernas com impaciência, ninguém a estalar dedos nervosos. Da massa incorpórea só o que recebi foram perguntas por escrito, objetivas e boas. Por horas discutimos a narrativa, e dali saímos sem narrativa nenhuma. Encerramos com a promessa de um dia, quem sabe, nos encontrarmos de verdade, numa mesa de bar, com cerveja, vinho, ruído ao redor, qualquer coisa que conturbe essa eficiência desoladora.

No último mês estive no Egito, na Inglaterra, em Brasília. No último mês não estive em parte alguma. Levei minhas filhas à escola, deixando-as no portão, trocando acenos com algumas mães com quem costumava trocar palavras. Fiz compras no mercado do bairro, me tomaram quinze minutos e nenhum olhar, no início da noite já estavam entregues em casa. Tudo acomodei na despensa e na geladeira, com as meninas subindo nas minhas costas, a mais nova escalando as minhas pernas a qualquer hora, exigindo colo: esse tem sido o cansaço dos dias. De noite cozinhamos algo rápido, ou pedimos comida por aplicativo. Um entregador não apareceu, ficou com os nossos hambúrgueres: para ele pode ter havido uma história, para nós não houve.

Dizíamos que sofria de déficit narrativo um amigo cujos relatos sempre careciam de algo, anunciavam uma emoção que não se cumpria, terminavam em anticlímax. Não sofria de impertinência ou irrelevância, é alguém que diz coisas interessantíssimas. Mas sofria de déficit narrativo porque julgava haver tramas onde não há, onde tudo se encerra sem conflito algum, sem surpresa ou viravolta, sem uma nuance qualquer que faça de um relato propriamente uma história. Hoje me sinto acometido pelo mesmo mal, sinto que estamos todos acometidos pelo mesmo mal. Vivemos o tempo do déficit narrativo — e, por coerência, por lógica, não pode haver impacto algum ao fim desta declaração exagerada.

Foi nesse tempo que resolvi me fazer cronista, ofício que nunca tinha desempenhado. É claro que a crônica, como toda literatura, sempre pode se limitar ao ínfimo, ao rotineiro, pode tentar dotar de significado o insignificante, evitando dessa maneira a espera do inesperado. Pode também, com alguma tranquilidade, espraiar-se no tempo e tomar algum peso emprestado do passado. Ainda assim, descubro agora, é quase sempre algum deslocamento o que instiga o cronista, o que o incita a tomar a palavra e enfim narrar. Se a vida não lhe oferece algo de minimamente insólito, de improvável, de curioso, um rasgo ainda que discreto no tecido do comum, resta-lhe pouco mais que o silêncio ou a metalinguagem.

Tantas vezes a literatura se vale do deslize, da sutil derrapada da vida a um ponto ligeiramente mais ao lado. Nestes tempos, o noticiário parece deter o monopólio do desorbitado, e aos seres comuns nos sobra um cotidiano pobre, carente do encontro e do desencontro. Seguimos a vida como se ela ainda preservasse sua matéria vital, como se ela não tivesse se tornado seu simulacro eletrônico. Removam-se das crônicas os abraços entre amigos, os esbarrões fortuitos nas esquinas, as festas, os bares, e não sei se o gênero sobrevive. Padece a literatura, mas esse é o menor dos males: remova-se tudo isso da existência cotidiana, substitua-se por sua cópia em telas luminosas, e não sei se a própria vida sobrevive.

Esta semana morreu uma vizinha querida do nosso prédio, morreu de covid. Era uma mulher robusta e feliz, vendia bolos, comprei dela algumas vezes os bolos que sua irmã fazia. Tinham um sabor que hoje a vida se recusa a ter, um sabor real, intenso, nítido. Soube de sua morte por aplicativo, e houve um comunicado oficial do condomínio que não fugiu ao linguajar oficioso. Posso imaginar algo da comoção sincera e fugaz em cada apartamento idêntico, posso imaginar lágrimas e um silêncio condoído, mas o caso é que não soubemos cultivar uma comoção coletiva. Ali ninguém lhe dedicou mais nenhuma palavra, dissipou-se sua existência sem mais narrativa. Hoje até mesmo a morte se vive em anticlímax.