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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O amor nos tempos da covid

 "Amor em tempos de Covid" - Reprodução/Instagram
'Amor em tempos de Covid' Imagem: Reprodução/Instagram

Colunista do UOL

17/04/2021 06h00

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Hoje fez quinze anos desde que começamos a morar juntos, ela disse, já deitada na cama, passada a meia-noite. Sua voz não trazia nenhuma vibração particular, tampouco uma acusação pelo lapso, não parecia mais que o registro neutro da data que antes festejávamos. Posso ter erguido as sobrancelhas por um átimo, posso ter erguido o copo d'água que estava prestes a deixar na cabeceira, num brinde precário que ela não quis acompanhar. Deitei ao seu lado, e o beijo que trocamos trouxe o rastro do cansaço, adiando os festejos para a sexta. Talvez fosse inevitável: o cheiro ardente do álcool gel nos lembraria sempre o destino dos amores contrariados.

Na sexta ela acordou com os olhos baços, tomada de mal-estar, e quis sumir entre os lençóis quando as meninas saltaram sobre o seu peito, ainda antes das seis horas. Logo os sintomas foram se fazendo mais claros e mais lúgubres: tinha febre, coriza, tosse, talvez lhe faltasse o olfato, talvez lhe faltasse o ar. Por alguns dias o amor se deixou eclipsar por cuidados e receios não declarados, o amor se fez analgésicos e antitérmicos e frases calmantes em intervalos regulares. Deu-se a excursão familiar à farmácia, as meninas dançaram por seus corredores como se por campos ensolarados, e o exame negativo dissipou temores e sintomas de imediato. Podíamos então voltar a nos perguntar, com dignidade, com grandeza, com desejos incontíveis de viver, o que fazer com o amor.

Nos dias seguintes era preciso vencer os afazeres acumulados, cumprir urgências atrasadas, negociar o prazo das impossibilidades. Nossos contatos pouco passaram de esbarrões sob a soleira da porta, um a entrar no escritório para seu turno de trabalho, outro a sair do escritório para seu turno parental. Coube ao amor refletir-se no rosto severo da produtividade. Uma hora valiosa de trabalho ela roubou para escrever palavras bonitas numa rede social, recordando nossos quinze anos de noites oníricas, de madrugadas inebriadas de carinho e poesia, e dias sombrios que se iluminam quando estamos de mãos dadas. Eu aproveitei o intervalo entre o jantar e o banho das meninas para alinhavar umas palavras próprias, não fosse sua mensagem pública ficar sem resposta. Devia ter agregado, em minha defesa, com toda sinceridade: Só porque alguém não te ama como você quer, não significa que não te ame com todo o seu ser.

E então, quando já não faltava cabeça, quando já não faltava saúde, quando já não faltava tempo, talvez nos faltasse ânimo. Na sala nos encontrávamos pouco depois das oito horas, cada uma das meninas já em sua cama, nós dois atirados no sofá, convalescendo ao fim da batalha doméstica. Pela luz bruxuleante da televisão nos chegavam notícias de um combate bem mais árduo, esse sim fadado à derrota, a contagem vertiginosa das baixas alcançando as três mil mortes diárias, a falta de médicos e medicamentos sob o cinismo da autoridade máxima, um país em sua derrocada melancólica. O amor se torna maior e mais nobre na calamidade, uma declaração dessas talvez pudesse nos consolar, mas o que fazer se a calamidade toma os nossos corpos, se ela nos invade e nos viola na infinidade dos nossos poros.

Ontem celebramos nossos quinze anos juntos. Ontem, assim que nos foi dado descansar, nem ela nem eu tivemos vida para nada que não fosse pensar em nós, sonhar conosco, nem ela nem eu tivemos corpo que não fosse para o encontro necessário. Ontem a realidade soube se recolher em seu espaço próprio, já não se projetou nas paredes da nossa casa, não se fez sangue em nossas taças de vinho, não acompanhou os nossos passos até o quarto. Hoje é uma manhã clara apesar do tempo nublado, e eu nada preparei para escrever embora me seja obrigatório. Mas não me importa: tudo aprendi com García Márquez, e agora sei que devo pensar no amor como um estado de graça que não é um meio para nada, e sim uma origem e um fim em si mesmo.