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Julián Fuks

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

O samba que perdemos - e a baita memória com que cantamos o esquecimento

O bar Ó do Borogodó, que encerrou atividades em São Paulo - Ezyê Moleda/Folhapress
O bar Ó do Borogodó, que encerrou atividades em São Paulo Imagem: Ezyê Moleda/Folhapress

Colunista do UOL

13/03/2021 04h00

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Repara na baita alegria com que se canta a tristeza, ele disse, e eu me pus a observar a vastidão de rostos felizes, os olhos cerrados, os queixos erguidos, o canto que despontava em cada um vindo de algum lugar íntimo e longínquo. O bar eram aqueles corpos a oscilar num ritmo preciso, as vozes em uníssono a percutir nas paredes cinzas, a reverberar sob as camisas, sob os vestidos. No palco ao rés do chão, a cantora também mantinha os olhos quase fechados, o queixo erguido, rodava o microfone diante de seus lábios enquanto cantava sua desgraça que era a nossa desgraça, você arruinou a minha vida, sua alegria que era a nossa alegria.

O Ó era assim, a cada noite o Ó era assim, um samba de luzes acesas para que nos víssemos, para que não pensássemos em esconder tristezas, para que pudéssemos somar sorrisos. Era raro que eu me juntasse aos corpos dançantes. Na maioria das vezes, minha mulher descia à turba e se perdia, eu permanecia um degrau acima junto ao balcão, onde os copos se enchiam sem sobreaviso e as palavras ainda eram audíveis. Muitas amizades estreitei ali, muitos casais vi nascer, a maioria efêmeros, outros duradouros e férteis - poderia ficar embevecido como em tais noites e dizer que aquele espaço exíguo era a própria fonte da vida. Poderia seguir, melancolicamente, e declarar que agora a vida não tem mais fonte, a vida já é só a sua ruína.

Se ainda estivesse ali, naquele canto do nosso bar favorito, Tony Monti voltaria a tomar a palavra para me repreender por ser tão grandiloquente, tão dramático. Tony e eu vamos travando, há quase vinte anos, uma mesma conversa infinita que trata de todos os assuntos do mundo, e que interrompemos a cada encontro com uma falsa despedida. Não sei quem de nós chegou a dizer isso alguma vez, já nos importam pouco as autorias. Sei que o Ó era o terreno dileto dessa conversa, a casa onde morava a nossa amizade, eu diria aos seus ouvidos contrariados, a casa que em pouco tempo estará demolida. Ou penso nele ao falar do Ó porque alguma menina escrevera na parede do banheiro, em indiscreto batom vermelho: Tony M., samba só se for com você.

Ali nos refugiávamos, minha mulher e eu, duas ou três noites por semana, e alongávamos as madrugadas, e adiávamos as manhãs feitas de uma luz branca e fria. Também era no Ó que celebrávamos todos os acontecimentos, das grandes conquistas às ninharias corriqueiras, umas e outras bastante indistinguíveis, os aniversários, as defesas acadêmicas, os lançamentos de livro. No Ó ela celebrou sua despedida de solteira, na véspera da festa de casamento que nunca fizemos. Aquele espaço era também a nossa casa, e a ela tentávamos retornar a cada vez que viajávamos, buscando nas cidades mais diversas o correlato perdido do Ó, um bar-irmão que partilhasse sua atmosfera, seu espírito. Nunca foi muito difícil, bastavam algumas noites e uma indicação certeira para que chegássemos ao Ó do tango, ao Ó do jazz, ao Ó do rock, ao Ó do fado.

Não sei que fim terão levado esses Ós alternativos, os Ós que devem existir em cada cidade deste mundo vasto e cada vez menos festivo. Sei que o Ó do Borogodó está fechando as suas portas, que foi lavrada a ordem de despejo para o próximo dia 25, assinada por algum juiz austero e infenso ao samba, um juiz imbuído de seu ofício. Não quero me fazer grandiloquente ou lírico, mas sinto que suas paredes não resistiram sem a vibração das vozes, no silêncio uníssono da pandemia. Em tempos tão difíceis, pouca alegria tem sobrado para cantar tanta tristeza, e os sambas têm soado todos tristes, embalando outros fins mais sensíveis.

Ainda assim, a comoção com que escrevo este texto é menor, muito menor do que aquela que pude testemunhar nos amigos, nos conhecidos, nos milhares que se enterneceram diante da notícia - milhares que eu poderia chamar de desconhecidos, se não suspeitasse tê-los visto alguma vez, de olhos cerrados e queixos erguidos. O Ó não era o meu bar, não era o nosso bar, era o bar da vida de toda essa gente, é o que elas dizem em derradeiro uníssono, num aplauso persistente por uma última música, um último samba antes de partir. Aplaudem e insistem enfaticamente: enquanto escrevo este parágrafo, fico sabendo de uma campanha coletiva para salvar o Ó, e torço para que o bar resista e torne insensatas todas estas linhas.

Sinto que o que tememos, tantos de nós, não é o fim do samba, que jamais morrerá apesar de tanta agonia - isso aprendemos bem. Sinto que tememos que o bar seja esquecido, e que assim também as nossas noites acabem por esvaecer no tempo. Mas se Tony estivesse ao meu lado neste momento, se estivéssemos observando juntos toda a turba comovida, eu cutucaria uma costela sua com meu cotovelo e lhe diria, talvez ainda com um sorriso: repara na baita memória com que se canta o esquecimento.