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Julián Fuks

ANÁLISE

Texto baseado no relato de acontecimentos, mas contextualizado a partir do conhecimento do jornalista sobre o tema; pode incluir interpretações do jornalista sobre os fatos.

Subitamente pontuais: será o fim da imprecisão temporal dos brasileiros?

Getty Images/iStockphoto
Imagem: Getty Images/iStockphoto

Colunista do UOL

06/02/2021 04h00

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Entre tantas indignações, fúrias, abominações, restará algum espaço para as pequenas cismas? Alguém me ouvirá se eu falar de um estranhamento menor, uma aflição ligeira, uma inquietação mínima? Não importa, falarei mesmo assim, já não consigo me conter: estou intrigado com a súbita pontualidade que tomou conta do país. Vai ser preciso registrar mais essa entre as muitas mudanças que temos visto: ao que parece, já não somos terra de brandura temporal, de lentidão, de espontaneidade. Ao que parece, vamos nos entregando de vez à rigidez cronológica.

A transformação, coerentemente, deu-se num momento preciso: na data exata em que os encontros deixaram de ser presenciais, na hora exata em que as pessoas desertaram as ruas e assumiram seus lugares diante das telas. Como se a luz branca dos aparelhos produzisse um despertar coletivo, uma atenção inédita à infinidade de relógios que nos cercam. Como se todo o atraso que antes marcava os nossos dias se devesse a meros contratempos, ao caos urbano, o trânsito, a porta emperrada, o elevador lento. O caso é que se deu a surpresa: de repente nos tornamos outros, quase britânicos; de repente estamos todos obstinados com o minuto específico em que se iniciam as reuniões, as aulas, as lives, até os encontros íntimos.

Já imagino a profusão de pessoas que celebram a mudança intempestiva. A pontualidade conta com seus defensores aguerridos, os que veem nela a suma expressão da produtividade, da eficiência, da seriedade, do compromisso. Não fossem esses defensores, talvez toda a questão me passasse despercebida, talvez nada me movesse a falar sobre ela. Mas, sim, há algo mais na vida do que esses valores sisudos. É contra os seus defensores que eu ataco a pontualidade: é em defesa de uma fração ínfima dessa nossa existência acelerada, em defesa do que ainda resiste em nós de improdutivo, de ineficaz, de lúdico, de lírico.

Foi um sociólogo alemão, Norbert Elias, quem se organizou o bastante para investigar o funcionamento do tempo nas sociedades humanas. Sua descoberta pode espantar: que aquilo que chamamos "tempo" é muito mais recente do que seria de se imaginar, e que ainda não tem lugar nenhum em inúmeras sociedades. Que, para parte da humanidade, o tempo tem se feito progressivamente mais coercivo, mais opressivo, imprimindo sobre os indivíduos uma pressão sensível, tentando lhes incutir o valor maior da autodisciplina. Ele qualifica: "uma pressão relativamente discreta, comedida, uniforme e desprovida de violência, mas que nem por isso se faz menos onipresente".

É claro que tem sua utilidade o tempo, ninguém o negaria. Elias descreve como "os relógios exercem na sociedade a mesma função que os fenômenos naturais - a de meios de orientação para pessoas inseridas numa sucessão de processos sociais e físicos". É claro que precisamos, em grande medida, dessas balizas. Mas quão mais bonitos, delicados, gentis são os fenômenos naturais que nos ensinaram o tempo, isso que então dotamos de um antipático rigor medido? Quão mais amenos não eram o ritmo das marés, o nascer do sol, os batimentos do pulso, quão mais adequados ao fluxo inevitavelmente impreciso da vida?

Paro por aqui com as teorias, não quero escrever um texto rígido contra a rigidez. Não me entendam mal, não sou sujeito distraído ou relapso, tenho pouco daquilo que se reputaria irresponsável. Carrego em mim, pelo contrário, o ímpeto da pontualidade: fui um adolescente comprometido com o relógio, o primeiro a chegar nas festas, sempre constrangido, constrangendo também quem me recebia. Era tão pontual que me tornava risível aos olhos dos amigos. Com eles então aprendi que no Brasil era diferente, que aqui era preciso chegar sempre um pouco depois do horário, e que havia um conforto social nessa prática. Aprendi a ser pontualmente impontual, e descobri que ganhava com isso momentos preciosos de ócio. Não pude senão concordar com Oscar Wilde: "a pontualidade é a ladra do tempo".

Não esqueço um encontro de anos atrás, um jantar com pessoas de diversos países realizado na informalidade alegre de uma residência artística. Cheguei, com outros brasileiros, uma hora depois do combinado, pontualmente impontual, apenas para ser recebido pelo olhar consternado da anfitriã suíça. "Por quê?", ela repetia, entre indignada e sentida. Recordei o sentimento antigo, pedi desculpas sinceras, e então nos sentamos todos para conversar sobre essas estranhas normas culturais que tanto nos distinguem. A consternação deu lugar à curiosidade, logo ao riso, e então a um indisfarçado encantamento. Pode haver beleza na impontualidade, na lassidão do tempo, percebi. Uma beleza discreta que quase se ausenta, mas que alguma hora chega.

Em meses recentes, talvez contagiado pelo novo clima, já não consigo escapar tanto aos domínios da pontualidade, me tornando em vez disso seu agente. Na paternidade é que a metamorfose se faz mais visível, nas tantas ocasiões em que preciso apressar a minha filha de três anos, convencê-la de que o tempo é escasso. Corro pela casa à procura de seus sapatos enquanto ela se perde em devaneios, ou propõe que brinquemos de ninjas, ou me pergunta sem sobreaviso quem foi que inventou as pessoas. Não reconheço a minha própria voz quando lhe digo que não temos tempo para isso, que no carro eu explico a origem da vida, quando estivermos a caminho.

Há algo de inescapável, volto a Norbert Elias, na coerção social do tempo. É uma ação inelutável da multidão sobre o indivíduo, a transmissão lenta e definitiva de uma doutrina. E é justamente por ser inescapável, por ser inelutável e definitiva, que eu lhes peço alguma clemência. Já estamos plenamente inscritos na lógica produtiva; suspeito que tenhamos pouco a ganhar com a adesão completa e final à precisão dos minutos. Sejamos impontuais, apenas ligeiramente, por ínfimo que isso pareça: essa há de ser mais uma entre as nossas módicas resistências.