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Julián Fuks

Guerra das vacinas: a mais nova expressão da selvageria do capitalismo

Ambiente criado para relatar a Revolta da Vacina, na exposição "À Sua Saúde" - Vanessa Melo
Ambiente criado para relatar a Revolta da Vacina, na exposição "À Sua Saúde" Imagem: Vanessa Melo

Colunista do UOL

23/01/2021 04h00

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Que, em tempos de urgência e sofrimento, revisaríamos nossas posturas mais nocivas, recriaríamos o mundo de outra perspectiva. Faríamos nascer uma cultura mais solidária, unida, livre de pequenezas individualistas. Acabaríamos por construir, entre todos, uma sociedade mais equilibrada e mais justa, menos afeita a barbarismos. Duro golpe têm sofrido os otimistas de tempos sombrios: dia a dia, cada um dos anseios transformadores que alguma vez ouvimos sobre a pandemia parece cair por terra miseravelmente.

Tomemos o assunto que tem movido paixões nos últimos meses: a guerra das vacinas. Se alguma vez pensamos que sua produção massiva estaria voltada para o bem comum, se alguma vez acreditamos que haveria uma distribuição racional e igualitária da proteção ao vírus, alheia aos desmandos do mercado, já há algum tempo essas ilusões estão perdidas. O "ouro líquido" do novo mundo, tal como o batizou o secretário-geral da Interpol, se fez motivo de disputas indecorosas de todo tipo, de tenebrosas transações marcadas por interesses financeiros, comerciais, diplomáticos, políticos. Se porventura servir para salvar vidas, será um surpreendente efeito colateral de um mercado rico em propósitos furtivos.

A denúncia não vem de um movimento anarquista, ou de algum cientista político a vociferar em defesa do comunismo. É a própria Organização Mundial de Saúde que emprega as palavras mais enfáticas para falar do problema, acusando a desigualdade de condições que subjaz a essa trama. As vacinas são negociadas pela lógica do nacionalismo, e não da saúde, e o resultado já fica claro nas estatísticas: enquanto os países ricos vão imunizando suas populações regularmente, resta aos pobres a batalha desesperada pelas poucas doses remanescentes. "Preciso ser franco: o mundo está a caminho de um fracasso moral catastrófico, e o preço desse fracasso será pago com vidas nos países mais pobres do mundo" - as palavras de Tedros Adhanom, diretor-geral da OMS, não poderiam ser mais contundentes.

Pouco a pouco, os meandros da questão vão tomando os jornais do mundo inteiro, vão revelando quanto somos regidos por escaramuças e mesquinharias. A mais ampla iniciativa comum por uma distribuição equitativa de vacinas, a Covax Facility, tem sido abandonada em nome de uma corrida desenfreada: cada governo tenta fechar seus contratos bilaterais com os laboratórios, pagando para isso preços incertos, instáveis, frequentemente injustos. E vemos a lógica da desigualdade se repetindo de um âmbito a outro, replicando-se dos mercados internacionais aos domésticos. Penam mais, é claro, os povos liderados por governos incompetentes, indiferentes, aliados à morte.

Olhando o rosto das tantas autoridades que nos governam, perscrutando as expressões faciais de tantos homens sórdidos, poderíamos nos interrogar à maneira de Balzac: "Não está ali, acaso, o único deus moderno em que se acredita, o Dinheiro em todo seu poder, expresso por uma única fisionomia?" A indagação tem quase dois séculos, mas preserva limpidamente sua atualidade. Traduzida em termos mais recentes , com o cinismo e a pobreza de sentidos que caracteriza o nosso tempo, poderia ser substituída pelo bordão nascido do marketing político: "É a economia, estúpido."

Se há uma razão para que eu escreva este texto, para que tangencie tecnicalidades sanitárias que em grande medida desconheço, é justamente para questionar a passividade com que temos aceitado essas explicações, a tranquilidade com que nos acomodamos à regência do capitalismo. Não é, não deveria ser a economia a ditar as regras da saúde, a controlar o futuro cada vez mais soturno de uma pandemia. Não é, não deveria ser a economia a responsável por garantir ou condenar centenas de milhares de vidas.

"Eu, que nada mais amo do que a insatisfação com o que se pode mudar, nada mais detesto do que a profunda insatisfação com o que não pode ser mudado", quem diz é Bertolt Brecht. Há dias em que me deixo tomar por esse mesmo sentimento, e nesses dias meus textos resultam um tanto mais sombrios, não nego. Mas depois penso que ele mesmo, Brecht, batalhou em cada uma de suas linhas para mudar o que não pode ser mudado, para abalar o inabalável. E que esse princípio a um só tempo ético e utópico deu sentido à sua obra e sua existência.

São duros demais estes tempos para que abdiquemos de anseios transformadores. Mas esses anseios são inermes e inócuos quando não chegam ao cerne da questão, quando se reduzem ao voluntarismo, ao mero desejo vago. Em algo a guerra das vacinas é transparente: revela com máxima clareza que é o capitalismo, estúpido, o que precisa ser profundamente revisto com urgência.