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Julián Fuks

Obrigado, Quino. Elegia ao artista que nos fez amar a Argentina

Retrato de Quino, em 1970 - Adriano Alecchi/Mondadori via Getty Images
Retrato de Quino, em 1970 Imagem: Adriano Alecchi/Mondadori via Getty Images

Julián Fuks

03/10/2020 04h00

É pelas pessoas, não pela bandeira, não pelo horizonte a se estender na planície, não pela largura das avenidas e a imponência dos edifícios, é pelas pessoas que chegamos a amar um país. Minha relação com a Argentina sempre foi marcada pela ambivalência, por uma dinâmica complexa de aproximações e afastamentos. De atração pelo que ali existe de mais inteligente e inventivo, de repulsa por sua história de truculências que afetou também o destino dos meus pais, o meu destino. Acho que, nas visitas renitentes que eu fazia à capital do país, passeava por suas ruas um tanto taciturno, desconfiado, esquivo, até que conheci Quino. Com Quino aprendi a amar a Argentina da única maneira que eu poderia chamar de pura - palavra que nunca me permito.

Pode parecer estranha a disposição de falar de mim quando deveria estar falando do artista, da grandiosidade criativa de Quino, que infelizmente perdemos esta semana. O caso é que sua obra produz esse efeito sobre muitos, torna-se pessoal e íntima, uma casa que frequentamos como se pertencêssemos à família. É como se Quino soubesse construir com cada leitor um vínculo exclusivo, fundado sobretudo na admiração e no carinho. "Como fazer o mundo entender que a nossa relação é maravilhosamente diferente?", perguntam-se dois amantes numa charge sua, perdidos no meio de uma infinidade de amantes idênticos. Esse é o efeito que Quino cria sobre cada um de nós, uma infinidade de leitores idênticos a travar com ele uma relação especial e única.

Mafalda é quem abre a porta da casa, quem nos recebe com alguma frase desnorteadora e brilhante, e logo nos dá as costas para gritar algo ao pai, à mãe, para continuar existindo na intensidade de seus humores. Ficamos ali quietos em algum canto, a observá-la com olhos encantados, a apreciar seu equilíbrio delicado entre a ternura e a força, entre a inocência e a mais aguerrida das militâncias. É do desconhecimento próprio de toda criança que ela destila sua clarividência, seu estranhamento absoluto em relação a um mundo que perverteu seus caminhos, que se fez opaco e duro. Ante os nossos olhos, ela descobre o globo, descobre que estamos de ponta-cabeça no hemisfério sul, e num gesto a um só tempo insensato e subversivo vira o globo e reordena o mundo, assim nos devolvendo o prumo.

Mafalda é "uma heroína enraivecida que recusa o mundo tal como ele é", quem o diz é Umberto Eco. Ela oscila entre uma percepção confusa do que acontece à sua volta, da realidade dos adultos e da política, e a afirmação de um punhado de certezas límpidas, uns poucos princípios irredutíveis: que a desigualdade, a violência, o consumismo, a sopa, são todas coisas terríveis. Com as outras crianças à sua volta ela também se estranha, trava diálogos ríspidos, rechaça o idealismo de Felipe, despreza a frivolidade de Susanita, lamenta a ganância de Manolito. E, no entanto, estabelece com eles amizades autênticas, cheias de derrisão e estima. Se nos visse ali no canto, essa é a nossa secreta esperança, talvez viesse nos dar o abraço sincero que por vezes ela dedica aos amigos.

Cada personagem tem sua graça, e sobretudo seu carisma, mas Mafalda os supera imensamente em riqueza. É um exemplo cabal de contestadora, de revolucionária, o personagem emblemático dos anos 1960, como diz de novo Eco, mas não é só isso. É uma feminista por intuição e por consciência, antecipando a emancipação mais efetiva que se daria nas décadas seguintes à sua existência, mas não é só isso. É uma menina encravada em seu tempo, muito atenta aos acontecimentos que a cercam, às ameaças sinistras que rondam o mundo e o país, mas não é só isso. Mafalda é uma dessas raras figuras complexas e completas que encontramos nas melhores ficções, Mafalda é infinita.

Não por acaso seu criador teve que abandoná-la para poder seguir - por dez anos Quino compôs em detalhes a existência banal e transcendente daquela menina, e então teve que dar novo rumo à sua arte. A maior parte dos leitores não acompanhou a mudança de cômodo, preferiu se limitar àquela sala tão cheia de vida, e assim perdeu a maravilhosa opulência do resto da casa, a beleza e a lucidez com que o artista povoou todos os quartos. Nas outras obras, desprovidas de personagens fixos, de tramas que se alongam numa sequência de tirinhas, talvez se faça mais transparente o humor peculiar de Quino, a mordacidade que às vezes ele empresta a Mafalda, mas que aqui se amplia e se aprofunda.

A opressão do trabalho, dentro ou fora de casa, a alienação que provoca a repetição do mesmo ofício por anos incontáveis, sob o jugo do impiedoso capitalismo - isso se lê em suas obras seguintes. Quanto podem se fazer opressivas também as relações amorosas, atravessadas pela desatenção, pela indiferença, por uma distância anímica quase intransponível. A mecanização de cada instância das nossas vidas, a desumanização do presente, resultando num agudo empobrecimento da experiência. Os muitos absurdos cotidianos, os muitos atos de insensatez, a vida que perdemos em tantos equívocos a se perpetuarem no tempo, rumo ao fatal desaparecimento. Tudo isso Quino nos apresenta em golpes súbitos, em páginas únicas de incrível potência.

Também no traço Quino se faz mais hábil nessas obras posteriores, na visão artística, na ousadia dos desenhos. O retrato literal dos acontecimentos vai dando lugar a uma dimensão mais simbólica, a metáforas que lhe exigem romper com a perspectiva, romper com a lógica ilustrativa, romper com os limites da própria página. A sucessão de micronarrativas e imagens em abismo acabam por transformar a experiência de leitura numa oscilação constante entre o riso e a vertigem.

Entre tantas histórias, tantos desenhos, lembro neste contexto de elegia da imagem de um velho que agoniza na cama do hospital, e é então visitado pela morte. O velho não se vai sem uma última ação enérgica: puxa a morte pelo braço e a leva para baixo do lençol, e ambos se atracam com grande entusiasmo. Vemos em seguida a foto do velho sorridente em sua lápide, e ao seu lado a morte enfurecida, esbravejando enquanto empurra num carrinho o filho que o velho lhe deixou. A cena é extravagante e pouco delicada, mas sinto que diz algo sobre a partida que Quino realiza agora, deixando entre nós uma miríade de criações expressivas e graciosas roubadas à morte. Obrigado, querido Quino.