Topo

Julián Fuks

Da reação à ação coletiva: momento convida a unir indignações

Quadro "O Grito", de Edvard Munch - AFP PHOTO / KATRINE
Quadro "O Grito", de Edvard Munch Imagem: AFP PHOTO / KATRINE

Julián Fuks

30/05/2020 04h00

Ninguém poderá negar a justiça da nossa cota diária de indignação. Imersos como estamos no caos, na crise, na degradação, em qualquer sinônimo crítico que agrade ao leitor, nada parece mais razoável do que indignar-se, a cada noite, madrugada adentro, a cada manhã. Mas há um tipo peculiar de indignação, minoritário talvez, que sempre me provoca uma mescla de incompreensão e sobressalto: a indignação pela falta de indignação, a revolta de uns contra o silêncio conivente que acometeria a todos os outros.

Nessa versão dos fatos, estaríamos quase todos paralisados, passivos, anestesiados, incapazes da reação necessária ao despautério que nos governa com mãos tiranas. A esse diagnóstico se segue sempre a exortação para que o país acorde, levante, mexa alguma coisa, como se estivessem num quarto de hospital e gritassem a um corpo agonizante - uma imagem que, cabe conceder, tem frequentado o temor de tantos. O que provoca estranhamento, o que parece imensamente improvável, é a ideia de que possamos dormir com todo esse ruído, que não estejamos em vez disso acometidos por uma insônia comunitária, uma vigília angustiada feita de raiva e alarme.

Entre uns e outros, se há distinção, talvez esteja na leitura de qual a reação necessária a tanto disparate. Exemplo que jamais me escapa à memória é o do indignado professor Avenarius, personagem lateral de "A imortalidade", de Milan Kundera. Avenarius é um terrorista poético, um justiceiro de gestos simbólicos, um homem respeitável que passa madrugadas furando pneus para combater a tirania do transporte individual. Sua ação mais eficaz é a distribuição do "diploma de burro total", que ele oferece anônima e discretamente a toda figura pública que se revele ignorante, bruta, execrável. Kundera descreve com mordacidade a agonia dos que recebem o diploma, a humilhação íntima que os devora, o medo corrosivo de que a notícia se espalhe.

Muitas horas já passei entre amigos brincando de definir figuras que mereceriam essa distinção imaginária, e hoje não tenho dúvida de que a atribuiríamos com louvor a Abraham Weintraub, Ricardo Salles, Damares Alves e tantos outros membros ilustres desse governo de horrores. O problema é que esse exercício pode se tornar expansivo e vicioso, e logo nos vemos atribuindo diplomas de repúdio a todo e qualquer apoiador desses sujeitos lamentáveis, e aos que ecoam em algum grau suas ações e palavras, e aos que não se horrorizam o bastante com elas, os que não as refutam com a devida ênfase, os que estão ocupados com outros afazeres, os distraídos, os ausentes. Vertiginosamente, quem leva a brincadeira ao limite vai criando círculos de pessoas intratáveis, desprezando uma população inteira, desistindo de qualquer diálogo.

Como o fascismo se combate em todas as frentes, como quem se omite é tão culpado quanto quem exerce a opressão ativamente, é o que prega esse argumento, cabe ao indignado hostilizar todos os resignados que estejam ao seu alcance, todos os que pareçam indulgentes. E, assim, nestes convulsivos anos, aderindo em maior ou menor grau a essa lógica, e compreendendo mal a sentença de que o pessoal é político, quantos de nós não nos pusemos a travar conversas ríspidas com pais, irmãos, tios, velhos amigos? Quantos de nós não acreditamos que nessas discussões domésticas sem desfecho possível estaríamos salvando o país? E quanto do nosso desânimo de hoje, desse desespero, dessa angustiada insônia, não virá das relações que deterioramos em debates tão justos e tão ínfimos?

Isolados com nossas certezas, com nossas palavras de ordem, com nossos gritos, pouco a pouco vamos cumprindo nós mesmos a profecia de que não há nenhuma saída, de que a reação aos absurdos cotidianos será sempre insuficiente. Incapazes de formar consensos, de aceitar as divergências menores, nos limitamos a expressar uma ira individual a cada declaração abjeta do presidente, ou de seus ministros, ou de seus filhos. Assim os mantemos sempre no centro do palco, sob os holofotes que lhes foram imprescindíveis para que ali se estabelecessem. Assim condenamos de partida, involuntariamente, a emersão de qualquer outro protagonismo, a composição de coletivos, de grupos plurais e heterogêneos.

Penso hoje no professor Avenarius e não posso deixar de sentir sua solidão, a agonia silenciosa que ele devia compartilhar com suas vítimas. Não quero mais me sentir isolado, minoritário, incompreendido. Pelo contrário, no momento em que mais se acirram os ânimos no país, agora que quem agoniza é o próprio governo e sua base cada vez mais acuada, com suas ameaças de golpe e seus patéticos gritos de basta, já não cabe apenas a reação. Agora é o momento de fazer de toda essa indignação acumulada uma ação, coletiva, comum, centrada, uma ação de mudança para a qual estão todos convidados - até os pais, os irmãos, os tios, os velhos amigos que já não ouvimos.