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Júlia Rocha

O que faz mal à saúde? Frituras, doces ou ser preto e pobre no Brasil?

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Imagem: iStock

20/12/2020 12h24

O que seria da sua saúde vivendo em outro lugar do mundo, sob condições menos degradantes? Você já parou para pensar que grande parte do que vivenciamos como adoecimento tem íntima relação com o contexto social, econômico e político que nos cerca? Já parou para entender o quanto aqueles resultados dos seus exames, aqueles laudos cheios de nomes complicados são consequências palpáveis das suas condições de vida?

Há uma tendência muito explícita à individualização das responsabilidades pelo adoecimento ou pela manutenção da saúde das pessoas. Contextos adoecedores são frequentemente ignorados enquanto avançamos em direção ao indivíduo. Assim, a péssima alimentação, rica em produtos ultraprocessados, pobre em alimentos frescos e que demandam tempo de preparo e mais dinheiro para serem comprados vira responsabilidade exclusiva da pessoa. Reduzimos tudo a uma incapacidade de aquele indivíduo fazer boas escolhas.

O sedentarismo é julgado e condenado por refletir a mais pura preguiça do indivíduo, que não consegue vencer o desânimo e sair do sofá. Pouco ou nada se fala sobre isso ser mais um sinal de que a vida já está suficientemente pesada e que falta tempo, conhecimento e lugar seguro para se exercitar.

O convite que quero lhe fazer hoje é um chamado a imaginar. Um convite para pensar como seria a sua saúde se você vivesse em outro lugar. Por exemplo, em uma cidade com um ótimo sistema de transporte público, com parques e extensas áreas verdes, com unidades de saúde públicas bem equipadas, com profissionais em número suficiente e com farmácias abastecidas.

Imagine que nesse lugar hipotético, se você ou alguém da sua família se sentisse mal teria acesso a todos os recursos necessários para restabelecimento da sua saúde, ou mesmo que seria acolhido adequadamente em serviços de cuidados paliativos, caso a morte não fosse mais adiável.

Há uma semana, conversei com uma amiga querida que hoje vive na Alemanha. Em novembro de 2019, ela visitou o Brasil para matar a saudade da família e dos amigos. Quando voltou à Europa, um amigo alemão lhe perguntou:

"Do que você sentiu mais falta durante sua viagem?"

E ela respondeu:

"De andar na rua sem medo."

Achei a resposta fantástica, Uma resposta que só poderia vir de alguém que nasceu no medo, experimentou a segurança e revisitou o medo, anos depois. Por estarmos aqui mergulhados em medo desde que nascemos, não percebemos o quanto isso pode ser danoso para nós. Nós sequer nos questionamos sobre o que seria da nossa saúde mental se pudéssemos andar por aí sem medo da violência policial contra os nossos, sem medo de assalto, de estupro, de agressão. Como é viver sem esses medos, aliás? Nunca experimentei. Isso deve ser muito bom para o controle da pressão e da ansiedade. Talvez, tão bom quanto vários comprimidos juntos tomados todos os dias por muitos e muitos anos.

Outra coisa que me tira a fome e o sono é pensar em como somos envenenados a luz do dia com a comida que comemos. Esse exercício de imaginação precisa incluir pensar em como seria viver comendo comida sem agrotóxico a preço justo, frutos de uma produção ambiental e socialmente sustentável.

Mais ainda, imaginar como seria se as propagandas de alimentos ultraprocessados, comprovadamente danosos a nossa saúde, fossem limitadas e restritas. Será que nossa alimentação seria como é hoje se as empresas fossem proibidas de acrescentar aos seus produtos a quantidade de açúcar, sal, gordura, além dos realçadores de sabor, que usam para que fiquemos literalmente viciados nisso que elas vendem? Haveria tanta hipertensão? Tanto diabetes? Tanta obesidade? Tantos transtornos alimentares?

E se a sua rotina de trabalho não fosse tão desgastante? Imagine. Se as horas no emprego somadas às horas no transporte público não tomassem toda a sua energia, você seria mais ativo? Faria mais exercícios físicos? Caminharia mais? Visitaria mais espaços públicos com a sua família? Pois é. Ao que parece, não se trata somente de fazer boas escolhas.

Na falta de opções de entretenimento, de cultura, de arte, as formas que encontramos para nos divertir e aliviar a dureza da vida também são resultado de políticas públicas (ou da ausência delas). Imagine… Consumiríamos tanta bebida alcoólica e de forma tão destrutiva se a vida fosse menos difícil de ser encarada de cara limpa? Se tivéssemos emprego, bons salários, acesso adequado à educação de qualidade, à saúde, à moradia digna, a saneamento básico? Haveria necessidade de tantos litros de anestesia sem a ameaça constante da violência estatal, do genocídio e do encarceramento da população negra? E se você pudesse produzir e frequentar bailes funk sem ser criminalizado por isso? E se sua religião e sua fé fossem respeitadas? E se seu filho pudesse andar por aí sem ser seguido por seguranças em lojas? Se a vida não fosse tão pesada, tomaríamos tantos antidepressivos? Fumaríamos tantos cigarros?

Não nego. Sendo eu uma médica, é mais fácil prescrever, encaminhar, pedir exames que ficar pensando sobre como somos inefetivos e ineficientes diante de tantas adversidades.

É possível que, para a maior parte das pessoas que chegaram até aqui, essas coisas não façam o menor sentido. Como dizem? É "mimimi". Você que está pensando assim deve estar confortavelmente sentado no sofá da sua casa segura, tomando um café da manhã com os alimentos que você escolheu comer, usando a internet banda larga que você contratou para trabalhar de casa. Difícil imaginar que existe no bairro ao lado uma realidade completamente diferente. Eu falo de um outro planeta que provavelmente você não conhece. Um Brasil invisível daí de onde você está. Eu falo de pessoas que provavelmente não lerão este texto.

Carimbar e assinar umas receitas, pedidos de exames e encaminhamentos é muito mais fácil que construir um mundo mais justo. Sim, é mais fácil, mas, como outras tantas coisas aparentemente fáceis, não funciona.