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Júlia Rocha

O SUS e a saúde como mercadoria

27.mar.2012 - Ambulância do Samu - Julia Chequer/Folhapress
27.mar.2012 - Ambulância do Samu Imagem: Julia Chequer/Folhapress

01/11/2020 11h19

De tempos em tempos, a onda de defesa do SUS passa por nós. Esta semana ela veio após um ato do executivo federal. Testando limites, o chefe do planalto praticou o famoso "vai que cola" e deixou no ar a sensação de que, sim, direitos são negociáveis e nunca serão tão importantes quanto os interesses financeiros das grandes corporações.

A velha mas eficiente prática liberal de sucatear, desinvestir e sufocar — para, em seguida, dizer que o que é público não presta e que bom mesmo é a sacrossanta e sem defeitos iniciativa privada — segue enganando desavisados de forma muito eficiente.

Mais do que questionar a sordidez destas ações, precisamos questionar a ideia que as fundamenta. A ideia de que absolutamente tudo pode ser transformado em mercadoria e negociado segundo as regras do mercado.

Saúde é um direito humano. Não é como um pote de molho de tomate exposto em uma prateleira da loja de conveniências da esquina. Se o molho estiver caro hoje, eu peço um desconto ou escolho outro cardápio para o almoço. Contudo, deitado no asfalto depois de um atropelamento, ninguém está em condições de negociar o preço da mercadoria saúde ou de lembrar a senha do cartão de crédito para, só depois, ser levado a um hospital.

Alegorias à parte, a saúde como um direito precisa estar no patamar daquilo que é inegociável.

Não é civilizado que sejamos divididos entre os que podem e os que não podem pagar e por isso devem perecer.

Para os usuários ativos do SUS, aqueles que precisam dele para controlar a pressão alta, o diabetes, a depressão, para os brasileiros e brasileiras que vivenciam situações de urgência e emergência, para os asmáticos, os enfisematosos, os tuberculosos, para as mulheres com seus filhos doentes, para aquelas que precisam parir, enfim, para os 150 milhões de brasileiras e brasileiros que dependem diretamente do SUS para absolutamente todas as suas demandas em saúde, a perda deste sistema traz prejuízos muito óbvios. Não é necessário explicar.

Já aqueles que pagam seus planos e investem parte significativa da sua renda para comprar assistência a saúde se percebem imunes a essa tragédia. Não estão.

Promover saúde, via de regra, não gera lucro. A balança é deficitária. O produto final de um sistema de saúde não é um rio de dinheiro, mas, sim, bem-estar social. Para a iniciativa privada, transformar saúde em mercadoria é transformar a assistência em algo capaz de gerar dinheiro. A população só vai achar isso uma oferta tentadora quando o sistema público estiver péssimo.

Percebam, há um conflito de interesses explícito e que se escancara quando analisamos as doações feitas por grandes empresas de saúde para campanhas eleitorais de deputados federais, senadores e governadores. A pressão popular vai vencer esses interesses? Os políticos eleitos com o apoio de quem se beneficia com a derrocada do SUS vão defender saúde pública, universal e integral para todos?

Nossas hashtags no Twitter não serão mais fortes que os milhões investidos pelas seguradoras para eleger seus representantes. Nossos votos foram comprados. Muitos dos parlamentares eleitos para enfrentar a fúria capital que quer mercantilizar nossos direitos estão acovardados diante da precarização da assistência à saúde que recebemos.

Precisamos de organização política para defendermos o SUS como o marco civilizatório que ele é. Saúde pública e universal é um sonho radical demais para caber somente nos corações de uns poucos que lutam sozinhos por esse direito há décadas. Que nenhum de nós precise sofrer as consequências de um SUS precarizado para entender o quanto esta luta é urgente.