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Júlia Rocha

As especialidades médicas e o paciente esquartejado

Mudança de paradigma traz a percepção de que Ginecologistas nãosão os únicos resposáveis pelos úteros das mulheres - Getty Images
Mudança de paradigma traz a percepção de que Ginecologistas nãosão os únicos resposáveis pelos úteros das mulheres Imagem: Getty Images

16/08/2020 12h48

Eis um debate urgente e importante. Tanto para ser estabelecido dentro das universidades de medicina quanto para ser incorporado aos ambientes não acadêmicos. Deveríamos falar disso em casa e entre amigos.

Quem de nós já não se deparou com um parente que frequenta tantos especialistas médicos por sua conta e risco, sem nenhum desses médicos ocupar o papel de coordenador do seu cuidado? Quem não conhece uma pessoa que acabou se perdendo em meio a uma pilha de receitas diferentes e conflitantes, incontáveis pedidos de exames, muitos deles repetidos? E quem não conhece alguém que estava mais adoecido indo a oito especialistas do que quando não frequentava nenhum? Não é raro. Aliás, situações assim são bastante comuns, principalmente entre pessoas que já passaram dos sessenta. Trata-se de uma perigosa fragmentação do cuidado.

É um tal de Cardiologista para cuidar da hipertensão. Pneumologista para tentar parar de fumar. Ortopedista para a dor nas costas ou no joelho. Neurologista para as dores de cabeça. Ginecologista para escolher o método anticoncepcional. Nefrologista por que está com dor nos rins. Urologista para tratar a infecção de urina. Endócrino para saber se tem algo na tireóide. E assim, ao infinito.

Quem não paga plano de saúde e precisa do SUS normalmente sente inveja de quem paga, justo por que esta pessoa pode marcar consulta direto com o especialista que deseja. Muitas vezes, nestas ocasiões, é o próprio paciente quem decide qual médico deverá cuidar de um novo problema por meio do seu conhecimento prévio sobre as especialidades.

Esta rede fragmentada de cuidado,em que um especialista não dialoga com o outro, em que o Médico de Família não ocupa seu papel de coordenador do cuidado de cada paciente, acaba impedindo ou dificultando muito que o paciente seja abordado de forma integral, por um profissional capacitado a enxergá-lo de um modo holístico, inteiro, não esquartejado.

Além de aumentar exponencialmente os custos de qualquer serviço de saúde, a cultura da hipervalorização das especialidades médicas e da desvalorização dos médicos de família e da sua atuação na Atenção Primária à Saúde é potencialmente danosa ao paciente, na medida que o divide em partes a serem entregues a cada especialista. A cabeça é do neurologista, mas também pode ser do psiquiatra, que divide o coração com o cardiologista. As articulações e os músculos são do Reumatologista, mas podem ser do Fisiatra ou Ortopedista, que dependendo da articulação precisará encaminhar para o Ortopedista de ombro, de mão, de joelho. Os rins são do Nefrologista mas em alguns momentos são do Urologista, que vai cuidar também do aparelho reprodutor masculino, mas se for o caso de infecções sexualmente transmissíveis, pode ser que compartilhem o cuidado com o Infectologista. O aparelho reprodutor feminino, incluindo as mamas, é da Ginecologia. Se tem anemia, marca com o Hematologista, mas, quando vai descobrir, o problema é no intestino. Encaminha para o Proctologista! A falta de ar é do Pneumologista? Ou será do Cardiologista? Ou do psiquiatra?

Percebam que até numa brincadeira que pretende ser didática, a escolha da melhor especialidade para resolver um problema de saúde não é nada simples. E esse também é um dos motivos que levam o paciente a peregrinar de consultório em consultório para encontrar a solução para o seu problema.

Recentemente no Brasil começou a ocorrer dentro dos planos de saúde um fenômeno que chegou com atraso de décadas em relação a outros países como Holanda, França, Inglaterra e Alemanha. Motivados pela possibilidade de economia e aumento da custo-efetividade, muitas seguradoras de saúde iniciaram mudanças estruturais importantes nos seus serviços. Como já havia sido amplamente demonstrado em estudos internacionais e nacionais, seus gestores perceberam que os serviços mais eficientes eram aqueles estruturados a partir de uma Atenção Primária fortalecida e resolutiva.

Foi desta percepção de que era possível gerar mais saúde e satisfação com mais eficiência nos gastos que nasceram os primeiros serviços de Atenção Primária à Saúde dentro das redes privadas pelo país. São serviços que se inspiram no modelo de atenção em rede que também é a base da construção da assistência no SUS e de outros diversos serviços públicos de saúde ao redor do mundo, incluindo o celebrado NHS Inglês, o sistema de saúde pública holandês, o francês, o alemão, o canadense e o de tantos outros países. São sistemas que se estruturam a partir de uma Atenção Primária com recursos humanos altamente capacitados e com ampla capacidade para abordar e resolver a maior parte das demandas dos pacientes.

Esta cultura de hipervalorização das especialidades focais e da completa desvalorização do médico generalista, formado e especializado em Medicina de Família é tão antiga e vigora há tanto tempo no país que, além da população em geral, também os profissionais de saúde se habituaram a esta fragmentação do cuidado. Mesmo entre médicos, o desconhecimento das funções do Médico de Família e da Atenção Primária à Saúde é imenso e preocupante.

Mais do que delimitar quais órgãos ou sistemas devem ser cuidados pela especialidade X ou Y, os sistemas de saúde modernos e eficientes constroem suas redes de assistência de modo a existirem caminhos definidos a serem percorridos em níveis de complexidade. O paciente, esta pessoa inteira, é o dono de todas as partes do seu corpo, e inteiro ele acessa este sistema por sua porta de entrada preferencial: a Atenção Primária, o que no SUS, significa dizer a Unidade Básica de Saúde. A depender da demanda tecnológica necessária para a solução do seu problema, este paciente deverá caminhar por esta rede assistencial, conduzido cuidadosamente pelo seu Médico de Família. Havendo a necessidade de referenciá-lo para um especialista, seu Médico de Família o fará, de forma consciente e não de forma intuitiva, como o paciente faria sozinho. Em um mundo ideal, este especialista o avaliaria, tomaria sua conduta e o levaria de volta ao seu Médico de Família através de uma comunicação eficiente dos ajustes feitos, garantindo assim que esta pessoa inteira nunca se perca nesta rede de cuidados coesa.

Um Médico de Família com boa formação clínica, humanística e com boas habilidades de comunicação geralmente soluciona e maneja de forma adequada 80%, 85% das demandas em saúde de seus pacientes. Em sistemas bem estruturados e adequadamente financiados, nos quais a Atenção Primária conta com a importantíssima atuação de Psicólogos, Nutricionistas, Fisioterapeutas, Terapeutas Ocupacionais, Assistentes Sociais e Fonoaudiólogas e ainda quando os casos de maior complexidade podem ser matriciados e compartilhados remotamente com outros especialistas, esta resolutividade pode ser ainda maior.

Há um propósito em tudo isso. Não se trata apenas de um enfoque financeiro, apesar disso não ser menos importante. Afinal, recursos em saúde são escassos mundo afora e promover mais saúde com menos dinheiro seria ótimo para ampliar benefícios e incluir pessoas historicamente sem acesso a estes serviços. Ainda que olhássemos só por esse aspecto, já seria bom. No entanto, há mais.

A formação dos Médicos de Família é voltada para a comunidade. O olhar generalista sobre as vidas que lhe cabe cuidar é um diferencial importantíssimo neste processo. Somos, especialistas em saúde e, ao longo do tempo, atendendo por meses e anos a mesma população, nos tornamos especialistas neles. Especialistas em saber que a dor no peito da jovem Jaqueline não é coração, mas uma alteração digestiva que compromete seu esôfago e está intimamente relacionada com os conflitos recentes que viveu no trabalho. Especialistas em saber que o Seu João, de 98 anos, que não toma remédio nenhum e tem a saúde de ferro, como ele gosta de dizer, não abre mão de comer seu torresmo uma vez por semana. Inclusive, já está acertado com ele que não faremos mil exames de seis em seis meses já que para ele é desnecessário, e que ele não vai mais usar o remédio para o colesterol que abandonou há 3 anos por que dava dor no corpo.

E se há entre nossos pacientes uma pessoa com uma doença raríssima, lá vamos nós estudar e nos capacitar para poder manejar seus sintomas, suas agudizações e compartilhar seu cuidado com o especialista adequado.

A população que atendemos e que já está consciente do trabalho que prestamos, sabe que não importa o que sintam, podem nos procurar, pois não delimitamos nossos atendimentos a órgãos ou sistemas específicos.

E somos também especialistas em identificar e filtrar pessoas que apresentam sinais de adoecimento grave. Chamamos de sinais de alarme. Fomos treinados para apontar na multidão aquela pessoa que pode precisar do especialista e de tratamentos mais complexos e que demandam tecnologia mais pesada para a solução de seus problemas. Fazemos isto pelo acompanhamento contínuo, ao longo do tempo, rastreando situações e condições que podem acarretar maior risco de adoecimento, conversando, perguntando, checando, solicitando exames quando eles são necessários, examinando cuidadosamente, marcando retornos breves, fazendo visitas domiciliares, fazendo contato telefônico, estabelecendo vínculo concreto da equipe com o território por meio dos Agentes Comunitários de Saúde e de tantas outras formas. Esta é a nossa expertise.

A formação dos especialistas focais, ao contrário, não é realizada na comunidade, mas prioritariamente dentro do hospital ou em centros de alta complexidade. São profissionais importantíssimos dentro da dinâmica assistencial, mas que foram treinados como deve ser: com o olhar voltado para a doença, para a intervenção. Em um bom sistema de saúde, a estes especialistas deveriam chegar apenas os pacientes que de fato precisam deles. Aqueles cujas condições de saúde não podem ser resolvidas ou melhoradas apenas pela assistência prestada pelas equipes da Atenção Primária.

Uma rede de cuidados que mereça ser chamada de rede deve contar com este tipo de estrutura e seus especialistas também precisam ser capazes de promover cuidado integral, entendo a importância da sua atuação como especialistas focais sem perder de vista a importância de se haver coordenação e compartilhamento deste cuidado por quem é especialista em Atenção Primária: o Médico de Família.

Se considerarmos os recursos limitados dos sistemas públicos de saúde e a incoerência que se instala quando um paciente se consulta com um especialista desnecessariamente impedindo que outro que de fato precisa do conhecimento e das habilidades deste profissional possa acessá-lo, a ordenação equivocada desta rede de cuidados pode significar morte e agravamento de condições de saúde.

Esta mudança de paradigma traz em si a percepção de que Ortopedistas, Reumatologistas e Fisiatras não são os donos do aparelho musculoesquelético dos seus pacientes, assim como Ginecologistas não tomam posse dos úteros das mulheres de que cuidam, assim como Médicos de Família não cuidam sozinhos de ninguém. O melhor cuidado é aquele feito em conjunto, no qual o paciente, detentor da sua autonomia e verdadeiro dono de todas as partes do seu corpo, é apoiado pelos profissionais desta rede estruturada para promover saúde, bem-estar e não controle ou colonização dos seus corpos.