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Júlia Rocha

Ser bom pai é apenas uma questão de escolha?

Companheiro de Júlia Rocha e a filha do casal - Arquivo pessoal
Companheiro de Júlia Rocha e a filha do casal Imagem: Arquivo pessoal

09/08/2020 11h46

Ser pai é uma viagem que um homem deveria fazer. A chance de se ver com seus segredos e seus medos diante de um filho não é chance para se desperdiçar. Entre fraldas sujas e roupinhas com cheiro de leite azedo, essa aventura é como aquela oportunidade imperdível de trabalho, de estudo, de viagem, de carreira. É preciso vivê-la.

Se pais soubessem do que se trata essa transformação, se soubessem a intensidade delicada deste revirar do avesso a alma, estariam na fila do cartório cinco minutos depois do parto para registrar seus nomes nas certidões de seus filhos. Assim, apressados, para que não houvesse dúvida!

Entretanto, a despeito da romântica versão do quarto com luzes e enfeites, bichinhos e adornos cheios de delicadeza, a paternidade está longe de ser uma escolha possível para todos os homens.

A ausência de um pai, sintoma social tão frequente, não deveria ser vista como algo isolado, consequência de uma decisão puramente individual, já que, de várias maneiras, as estruturas nos mostram o que elas querem das famílias.

Uma licença paternidade de 5 dias corridos, por exemplo, é uma violência em diversos níveis. Uma violência e um recado: "cuidar de filho é coisa de mulher."

É justamente neste período do pós-parto imediato que pai e mãe vivem janelas de oportunidades únicas para o reconhecimento de seus filhos e para a construção de vínculos fortes que sustentarão emocionalmente esta nova família. Seja a família como ela for. Essas janelas dificilmente serão reabertas adiante.

É também nos primeiros dias que a família precisa se amparar no desgastante descobrir desse cuidado. Um período que envolve privação de sono, insegurança com os cuidados daquele pequeno ser humano além do já esperado esgotamento físico e emocional. Mas o estado e suas leis determinaram que cinco dias de presença paterna neste ambiente é suficiente e está adequado.

Chega a ser escandalosa a forma como a ausência paterna é normalizada e institucionalizada. Quem se afasta do trabalho para cuidar do filho doente? Quem sai mais cedo para estar presente na reunião da escola? Quem acompanha o filho nas consultas de rotina? E antes que digam que isso simplesmente é da natureza, lembro que na natureza não há escolas nem postos de saúde.

É certo que o ser pai não é uma condição padrão para todos os homens. Há paternidades distintas, com preocupações distintas, com angústias distintas a depender de quem se é. Um pai preto, um pai branco, um pai desempregado, um pai subempregado, um pai na favela, um pai no asfalto serão pais muito diferentes e precisarão responder a realidades muito distintas.

Se esta reflexão avança, algo vai se tornando mais fácil de ser percebido. Ser pai presente, exercer uma paternidade ativa e plena não é apenas uma questão de escolha livre e individual.

Passa a ser importante, então, questionar para quem a paternidade é apenas mais uma decisão, como outras tantas que fazemos ao longo da vida.

Para famílias pobres, por exemplo, privações materiais são rotineiramente acompanhadas de outras privações. De afeto, de tempo, de lazer, de carinho, de acolhimento, de paciência, de doçura. Há famílias privadas da paternidade!

Homens cujas famílias o estado abandona à própria sorte exercerão a paternidade marcados por este abandono. E no Brasil, este abandono tem cor.

Historicamente, famílias muito pobres são famílias de mulheres. Avós, mães, tias e primas se revezam nas tarefas de cuidado. Os homens, ou foram mortos pela polícia, ou foram presos pela guerra às drogas (um nome que o estado deu para a guerra aos pobres), ou foram engolidos pela falta de esperança trazida pelo desemprego, pela ausência de oportunidades, pela falta que faz a escola. Muitos abraçaram seus destinos na vivência violenta das ruas acompanhados do álcool e de outras drogas. Para que não me chamem de identitária, feche os olhos e veja você mesmo qual a cor destas famílias.

Ali, não há qualquer referência de paternidade positiva. Pelo contrário, há referência de ausências, de vazios. Referências do não vivido. Há séculos estão estruturalmente impedidos de serem pais.

Se hoje, um homem com esta origem se esforça para ser um pai presente, ele não está lutando apenas para ter condições materiais que o permitam sustentar seus filhos. Ele está lutando contra um vazio de referências. Afinal, se somos os pais e mães que tivemos, que pais seremos se nossos pais foram roubados?

Sem referências, sem a memória do afeto, buscar as saídas para as constantes encruzilhadas inerentes ao cuidado dos nossos filhos se torna um desafio imenso, só possível de ser vivido coletivamente.

A resposta aparece na poesia de uma geração que transcende a dor para se fazer presente e construir outras histórias, outras memórias. Buscam a referência roubada no calor de outros afetos. O pai do amigo, o tio, o pai famoso preenchem lacunas que, se não devem ser esquecidas, podem ser decoradas com cores mais bonitas.

Pais pretos, pardos, pobres também querem ser pais, e esta paternidade é uma revolução em si, por que gera famílias mais fortes, mais funcionais com pessoas emocionalmente mais seguras.

Foi assim que viemos nos curando, e precisamos seguir perseverantes. Um vínculo emocionalmente saudável com um filho se constrói com a constância. É o dia a dia que vai determinar o tipo de relação que se estabelecerá.

A paternidade, assim como a amizade, não é feita de grandes encontros, de grandes eventos, de formaturas, de almoço de dia dos pais. É do cuidado rotineiro, do amparo diário que se percebe e se cultiva o amor de pai.

Em uma sociedade mais justa, ser um bom pai será apenas uma questão de escolha individual. Por enquanto, não é.