Topo

Júlia Rocha

Nós, os trouxas, os otários, e os espertinhos do Leblon

Bares cheios no Leblon durante a pandemia da Covid-19 - Reprodução TV Globo
Bares cheios no Leblon durante a pandemia da Covid-19 Imagem: Reprodução TV Globo

05/07/2020 13h44

Essa noite eu sonhei que andava pelo Rio.

É sério. Sonho daqueles realistas, com direito a aeroporto, táxi, hotel e sair à noite de chinelo procurando meus amigos cariocas de bar em bar. Fui assim, egoísta, a soprar meus vírus recém-adquiridos nesses longos meses de trabalho no SUS. Não pensava. Só ia. Tinha a sensação que se eu pensasse, morreria ali mesmo de arrependimento.

Éramos centenas, milhares de outros egoístas não pensantes a trocar nossos respiros, sem que aquilo nos fizesse questionar por um segundo sequer o individualismo e a falta de senso de coletividade daquela atitude insana.

Entre um gole e outro, entre um reencontro e outro, era proibido falar da realidade. Fomos abduzidos para um outro mundo. Um mundo sem males. A negação coletiva impedia o pensar. A euforia em-si-mesmada não nos permitia lembrar dos nossos pais, dos nossos avós, dos outros, dos trouxas, dos otários guardados em casa.

Talvez aqueles homens e mulheres nas ruas tivessem armas secretas. Quem sabe não eram cientistas disfarçados a comemorar a invenção de um tratamento ou uma vacina, antes de anunciar isso aos bobos que os contemplavam das janelas. Ou quem sabe ainda fossem endinheirados que compraram pela internet o seu próprio respirador, que fizeram curso online de intubação, que pediram seus próprios medicamentos sedativos. Mil possibilidades.

Será que compraram também uma médica intensivista? Uma fisioterapeuta? Uma técnica de enfermagem? Uma enfermeira? O oxigênio? O leito? O hospital? Vai saber! Esses espertinhos do Leblon são imprevisíveis. Compram de tudo.

Essa semana, numa conversa com uma amiga carioca, o assunto era máscara. Eu disse a ela que máscaras não protegem quem as usa. "Usamos para proteger o outro." Ela escutou chocada. Pediu para que eu não espalhasse isso pra não piorar as coisas. E olha eu aqui espalhando. Quem usa máscara protege não a si, mas ao ser humano do lado. Se eu, usando máscara, converso próximo a um sujeito sem máscara, quem tem risco de se contaminar sou eu.

Tem um simbolismo nisso tudo que é bem bonito. Usamos essa coisa chatíssima, que nos sufoca, nos pinica, nos atrapalha de falar, de ser ouvido, para proteger o outro. Um ato de amor ao grupo. Um ato de respeito ao que somos coletivamente. Se eu te protejo e passo por tudo isso para reduzir as suas chances de adoecer, indiretamente eu me protejo, pois, caso eu adoeça, terei acesso a recursos para me cuidar e restabelecer minha saúde, já que muito menos pessoas ficarão doentes graças ao nosso esforço coletivo.

É por isso que não me assusta que o líder máximo da nação tenha desobrigado a todos de usá-las.

A partir de hoje, quando você vir aqueles valentões andando pelas ruas e entrando em lojas sem máscaras, bradando que não as usarão e falando de liberdades individuais, não os chame de corajosos. Chame-os de covardes. Afinal, não são eles que estão em risco. São os outros. Eles estão protegidos pela minha, pela sua máscara. Estão guardados pelo nosso esforço, pelo nosso senso de coletividade.

Se todos usassem proteção adequada, mantivessem distanciamento de pelo menos dois metros e só saíssem de casa para o que fosse realmente inadiável, seríamos um grupo, uma nação, um país mais saudável. Se tivéssemos liderança preocupada em nos orientar e nos guiar por um caminho mais seguro nessa travessia, seríamos um povo menos triste e desencantado do que somos hoje.

Acontece que nem nos meus sonhos as pessoas destas terras conseguem pensar coletivamente. Essa parte do cérebro delas, a parte que se importa com outros, parece ter sido arrancada pela lâmina afiada e fria do egoísmo.

No meu sonho, segui caminhando em busca dos meus amigos porém não os encontrei. Voltei para o hotel, peguei o telefone e liguei para uma delas.

"Onde vocês estão?"

"Em casa, ora!"

É isso. Somos os trouxas. Os otários. Da janela, o que vemos são os espertinhos. Esses espertinhos do Leblon. Deve ser aquele óleo suave que Drummond disse que eles passam nas costas. E esquecem. Esquecem dos outros.