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Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Nós precisamos (com urgência) combater a fome, não de uma guerra santa

Joa_Souza/Getty Images
Imagem: Joa_Souza/Getty Images

Colunista do UOL

17/08/2022 06h00

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"Ma-cum-bei-ro", pensei em responder ao ouvir a questão sobre qual religião professo para o Censo 2022. Mas antes mesmo que pudesse dizer qualquer coisa, o baque sobre o peso do que poderia dizer me tomou o corpo. "Como vai me olhar caso diga, de fato, o segmento que mais me identifico?".

O medo não era (é) incompreensível. O recenseador me encontrou justamente dois dias após a ação feita pela primeira-dama Michelle Bolsonaro, em seu perfil numa rede social. Um ato de intolerância religiosa. A publicação, feita inicialmente pela vereadora de São Paulo Sonaira Fernandes (Republicanos), trazia a imagem do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante um banho de pipoca, dado por uma mãe de santo. O feito? Realizado para limpeza e proteção, prática comum àqueles que podem frequentar, por algum motivo, terreiros de umbanda.

"Lula já entregou sua alma para vencer essa eleição. Não lutamos contra a carne nem o sangue, mas contra os principados e "potestades das trevas", trazia a legenda escrita por Soniara. Michelle validou nos stories: "Isso pode. Falar de Deus não pode". O post viralizou e com ele, uma onda de ataques públicos aos irmãos de fé.

"E se ao ouvir minha crença, ele me atacar?" minha cabeça girava, tentando imaginar possíveis respostas, certeiras como a que líderes religiosos do candomblé e da Igreja Luterana deram aos jornais O Globo e Extra. Foi Babá Adailton, do Terreiro Ilê Axé Omiojuarô, quem sintetizou, cirúrgico, sobre o ato feito pela esposa do mandatário e demais pessoas. "O que é demoníaco não nos pertence, não conhecemos, deve ser um problema dessas outras tradições, que usam o demônio para alavancar a violência contra as outras tradições".

"Banho de pipoca não é ritual maligno", reforça a jornalista Flávia Oliveira, que publicamente trata da fé em que dispõe energia. Na figura da articulista, muitos passaram a notar o uso de vestes brancas às sextas-feiras, por conta de sua presença em jornais da GloboNews como Estúdio I e J10.

Em tempos de miséria, me assusta o crime da intolerância religiosa, tão presente na fala e atos públicos de políticos ou figuras que arregimentam multidões. E o quanto não se tornam responsáveis pelos atos violentos que pessoas legitimam a cometer, justamente por se sentirem autorizadas porque viram suas vontades representadas em fala de falsos Messias e/ou salvadores, que tomam Cristo como base fiel de sua existência e continuidade política. Afinal, para eles, Deus e urna passam a ser parte do mesmo "Pai-Nosso".

Em cenário de castigo, hoje em menor escala, da crise sanitária, e com cerca de 33 milhões de pessoas em situação de pobreza e ou extrema pobreza, nossos esforços deveriam ser outros. A fome está presente no prato, e faz vazio aos estômagos. Se isso não for urgente, o que será então?

Se uma guerra santa ou denominada "de fé" for traçada agora, entregamos nosso descaso e estamos fadados a não resolver saúde, educação, segurança, o desemprego e a economia, temas que afetam a vida de católicos, evangélicos, espíritas, umbandistas, candomblecistas, judeus, zen-budistas, muçulmanos, messiânicos e mais o que houver.

E que serão quantificadas, vejam só, através de um mapeamento que explique e analise o país, como o Censo, e a partir dele, a promoção de políticas públicas que assegurem o direito da liberdade, sendo um dos meios, a denúncia - feita Disque 100. Por isso, identificar a religião.

Como a resposta que, no fim, dei ao recenseador. "O terço de Fátima cruza o meu peito, quem me protege não dorme. Mas sou do batuque, seu moço".

"Eu também", entregou ele.

Rimos. Atotó.