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Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Durante muito tempo, eu não sabia que podia sonhar", me disse Lázaro Ramos

O ator Lázaro Ramos se emocionou no programa Roda Viva da última segunda (11) - Gregory Grigoragi
O ator Lázaro Ramos se emocionou no programa Roda Viva da última segunda (11) Imagem: Gregory Grigoragi

13/04/2022 06h00

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Venha comigo num exercício: quando foi que você, você mesmo, descobriu que poderia sonhar? Isso, sonhar. Imaginar algo e cataplot, realizar, seja no mesmo segundo, dali duas semanas ou tempos depois. Vai lá, me diga: quando foi?

Te ajudo então com outras perguntas nessa reflexão: como a sua realidade influenciou - ou não - a sua autoestima para o sonho? O quanto seu entorno te capacitou para que, apesar de determinada situação, você pudesse construir, na mente, o que era possível?

Essas e outras questões acabam sendo determinantes para uma juventude preta, pobre e periférica, na construção diária e coletiva do dia a dia, marcado pelo obstáculo primordial, ‘number one’, da lista: permanecer vivo. Sim, porque para sonhar, é preciso viver. E pra viver, é preciso ter comida, afinal de contas, torna-se desafio ainda mais brutal sonhar de barriga vazia. Brutal e impossível.

Mas se você reexistiu ao obstáculo de viver, quando então reconheceu (ou foi reconhecido) que esse lugar era seu? "Parece uma coisa simples, mas não é. Durante muito tempo na minha vida, eu não sabia que podia sonhar, eu não sabia que tinha perspectiva para além da ilha [do Paty, na Bahia]", me respondeu Lázaro Ramos, na última segunda-feira, ao vivo, quando no centro do programa Roda Viva.

Ao ouvir dele a demora para ser visto não como lugar da falta, mas sim, o da possibilidade, voei na cápsula do tempo e me vi, defronte do hoje diretor, não o jornalista de 1,87 cm. Era o pequeno Eduardo, cheio de desejos e vontades, enquanto tiros rasgavam os céus da favela. "Hoje não vou pra aula", era o que dava pra pensar. Justamente a escola, lugar da criação, da pulsão de vida e de sonhos. Se eu fosse, perigava não chegar.

Segurei o choro, tentando não desconcentrar, mas o inevitável já tinha se dado. Éramos eu, Lázaro, nossas versões de tempos que não voltam, e que pulam em nossa cara nesse mesmo momento, realidade dura que desperdiça vidas pela cor da pele, pelo CEP e pelo status social em 2022. Se você duvida, eu te recomendo ficar minutos acompanhando algum noticiário. Você há de assistir alguma história que remete a isso.

Ou ao passar na frente da banca de jornal, quando crianças e jovens veem-se representados numa dinâmica que reafirma estereótipos, como se o desfecho de suas histórias fosse ditado pela mesma narrativa, um mesmo lugar, como a capa de 9 de abril do jornal Folha de S. Paulo. Na imagem, jovens são mostrados como "suspeitos" de fazer parte de gangues. Nas cenas, armas e mãos na cabeça. Entendeu aonde quero chegar?

''Ainda hoje há jovens que não sabem que podem sonhar, que podem ter perspectiva para além daquilo que vivenciam dentro de suas casas, seus bairros. E a gente vai perdendo a nossa juventude para...várias coisas que não são lugares para a juventude’’, me resgata Lázaro na continuidade de sua resposta, permitindo-se também o lugar da emoção de quem se viu, com a sua pele, espelho desses estigmas.

No país que insiste em colocar a violência, a carência e a falta de oportunidade como lugar-comum para essa juventude, é preciso estar atento e forte, sem banalizar. Questionar, feito a proposta da professora Carmem Petit, em sala de aula, a mim e aos colegas de profissão, que muitas vezes ajudam a contar essas histórias. Ou como atitude contínua no mais recente trabalho lançado por Ramos, a partir desta quinta (14), com seu ‘’Medida Provisória’’, filme que entra em cartaz mesclando distopia que mais é presente, num enredo afrocentrado.

Enxergar o outro ou o Brasil como manancial de possibilidades, sobretudo em relação aos jovens, é desobediência civil. ‘’O estímulo à utopia é a meta'', finaliza Lázaro.