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Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Preto-pele-alvo

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Imagem: iStock

15/12/2021 06h00

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De frente pro espelho, me preparando para ir a um evento do qual faço parte da organização. É numa situação como essa, a de me arrumar e ver refletido, que admiro o tom de minha pele preta. Em segundos, me permito sentir o homem mais bonito que há e não por vaidade ou ego. Tenho como o que me cobre algo pelo qual não me falta orgulho.

Corta. Esse é o mesmo espelho que aponta os inúmeros desafios de ser quem sou, com características que definem uma trajetória muito curta no país em que vivo. E não só eu.

Por exemplo: andar bem alinhado não só porque é preciso, mas pra não dar margem que faça parecer alguém "suspeito", e ainda assim, ser. Ter que jogar com a boa-vontade do outro, sempre, pensando em até 10 ou mais respostas que validem que você não encarou, não intimidou, não ia fazer nada. E que você só virou o olhar ou, vamos lá, respirou, porque é necessário. E não, eu não queria roubar a madame.

Usar sapato fechado até pra coisas formais. Sandália? Nem a pau. Camisa clara, nunca escura e não, não posso usar capuz. Boné ou chapéu, jamais. Tá chovendo? Fico molhado, tem xarope em casa. Guarda-chuva só se for sombrinha.

Andar sem muletas mesmo com o pé quebrado, e não, não é para parecer invencível ou bonito. Eu vou voltar tarde do trabalho, terei que pegar moto. A subida da rampa fica apagada, pudera. Os caras podem estar de tocaia, e o que era muleta vira metralhadora. Eu preciso terminar a construção ou você já entendeu o que ia acontecer?

Eu queria que tudo que falei acima fosse algo "da cabeça", só que a realidade é mais forte nessa queda de braços. O mais recente relatório lançado pela Rede de Observatórios da Segurança Pública indica que uma pessoa negra é morta a cada quatro horas em ações policiais em seis dos sete estados monitorados pela organização. São eles: Bahia, Ceará, Piauí, Pernambuco, São Paulo e Rio de Janeiro.

É o Rio, estado de onde escrevo, o que mais mata pessoas negras em ações policiais. Ao todo, foram 939 registros entre os 1092 mortos que tiveram a cor/raça informada. Entre janeiro e outubro deste ano, 38 chacinas, sendo 27 delas provocadas por agentes de segurança, o que em porcentagem gira em torno de 71%. Isso aqui já passou de genocídio.

O que se faz agora é não perder de vista as vítimas diárias, como Kathlen Romeu, jovem de 24 anos atingida por um disparo de arma de fogo, na comunidade de Lins de Vasconcelos, em junho. Não foi só a morte de Kathlen, mas também de sua continuação: ela estava grávida de quatro meses de seu primeiro filho. Nesta semana, após seis meses do caso, a Polícia Civil concluiu que a bala que encontrou o corpo da jovem decoradora de interiores foi acionada pela própria polícia. Os gatilhos não param.

De acordo com os números oficiais, 86% dos mortos pela polícia fluminense são pessoas negras, um dado que se repete pelo segundo ano (2020 e 2021), mas que pode ser maior devido às subnotificações. Mas a polícia não atira sozinha. Por trás dela, um projeto de insegurança pública programado para abater e acertar ''na cabecinha'' por quem não suporta a presença de negros, periféricos e favelados em quaisquer lugar. Do mais alto e pitoresco político do país até a senhora que olha torto para um casal interracial, demonstrando aversão ao que vê, por exemplo e daí segue. O racismo à brasileira é de doer, meu chapa.

Quero crer na mudança, torço por dias melhores. O fim disso tudo? Eu não sei. Só rezo e espero pela data em que, ao me arrumar pra um evento do qual faço parte organização, não tenha que temer pela pele. E que eu só possa mesmo me sentir, ainda que por segundos, o homem mais bonito do mundo. E preto.