Topo

Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Quando a vida se impõe

No dia 18 de outubro, a CPI da Covid ouviu vítimas e familiares de vítimas da covid-19. Na foto está Katia Shirlene Castilho dos Santos, que perdeu os pais para a doença. - Pedro França/Agência Senado
No dia 18 de outubro, a CPI da Covid ouviu vítimas e familiares de vítimas da covid-19. Na foto está Katia Shirlene Castilho dos Santos, que perdeu os pais para a doença. Imagem: Pedro França/Agência Senado

20/10/2021 06h00

Receba os novos posts desta coluna no seu e-mail

Email inválido

Não é de hoje que venho com certa dificuldade de realizar cenas, comentários e notícias que vejo. Já acreditei ser cansaço, tirei dias de repouso e a sensação persiste. Me obriguei a não ter normalizado determinados acontecimentos, porém senti que não era a repetição das mesmas situações, e sim gradações que me pegam totalmente desprevenido.

Como a que vivi, assistindo pela TV à sessão da CPI da Covid na segunda-feira (18). Dessa vez, me vi em choque não pelo ineditismo do relatado, mas por ver presencialmente e vulneráveis, familiares das vítimas e demais pessoas impactadas pelo vírus que já ceifou mais de 600 mil vidas só no Brasil. Não consegui sair ileso da vazante de luto.

"Três dias depois de enterrar meu filho - foi um sábado ou um domingo; eu não guardo a data porque não quero guardar essa data -, eu ouvi aquela fatídica frase: 'E daí?'. Eu não procurei ler, não procurei falar nada, mas, com toda a repercussão, eu escutei lá no meu coração: 'E daí que seu filho morreu?' (...) "A minha dor não é mimimi. Não é, não é. Dói para caramba mesmo", compartilhou Márcio Antonio do Nascimento Silva, pai de Hugo, morto aos 25 anos. Procurei a cadeira enquanto escutava suas palavras, mas já estava sentado. Foi difícil escapar da emoção.

Giovanna Gomes Mendes da Silva, de 19 anos, perdeu os pais (a mãe pela covid, o pai por não conseguir tratar um câncer após ter a doença). Agora é a jovem que cuidará da irmã mais nova. "A gente não teve nem tempo de sofrer pela minha mãe. Não tive nem a oportunidade de chorar, não podia ficar chorando na frente do meu pai, tinha que mostrar força. Ele passou acho que 13 dias internado e veio a óbito também. Foi uma diferença de 14 dias do meu pai e da minha mãe".

Tentei virar pro lado, pregando o olhar ao celular, na forma de me entreter com qualquer coisa que saltasse me retirando daquele estado. Mas eis que a atitude foi ineficaz: vi pessoas se amontoando em frente a um supermercado em área nobre de Fortaleza, na espera de que o caminhão de lixo terminasse de passar para que pudessem subir e pegar restos de alimentos.

Corri pra fugir daquilo, mas voou na cabeça a reportagem escrita por Rodrigo Ratier aqui em ECOA, descobrindo que se você morar a um quarteirão da Av. Paulista e quiser comprar carne, o procedimento é padrão. O açougueiro prepara a carne, etiqueta a embalagem e a entrega nas suas mãos. Mas se morar no Jardim Ângela, periferia a 22 quilômetros dali, o bagulho é outro. Pesam a carne, mas vai direto pro caixa com a bandeja vazia, com acesso ao produto só após o pagamento.

Tem dias que não há muito o que falar ou fazer, e isso não é só porque está frio, chuva engrossando com barulho na telha do prédio do lado ou a vizinha queimando no forró, enquanto escrevo este texto. É que às vezes, mesmo para quem a palavra basta, as coisas ficam desarranjadas e perde-se o prumo. O que também significa dizer que me sinto angustiado em experimentar silêncios e vazios inexplicáveis a tudo que se monta aos olhos.

Dá vontade de desabar a falar, como se fosse colar os caquinhos da gente quando a vida se impõe e não tem saída. Daí como não tenho medo como o presidente, que chora escondido de sua esposa e primeira-dama, vou caçar o colo de minha parceira. Alivia.