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Eduardo Carvalho

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Racismo todo dia

O instrutor de surfe Matheus Ribeiro foi acusado por um casal de jovens de ter roubado a própria bicicleta, pela qual pagou R$ 4.500 - Divulgação
O instrutor de surfe Matheus Ribeiro foi acusado por um casal de jovens de ter roubado a própria bicicleta, pela qual pagou R$ 4.500 Imagem: Divulgação

23/06/2021 06h00

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Foi dia 28 de maio, há quase um mês, quando na Bahia o produtor cultural e compositor de cantigas de axé, Ronald Assis, denunciou à Polícia Civil crime de racismo religioso que sofreu de um homem enquanto passava por uma rua no bairro do Uruguai, em Salvador.

"Meu filho de santo, que tem 23 anos, estava na frente e eu com minha tia, de 56 anos, atrás, acompanhando os passos dela", contou Ronald, que é babalorixá.

No dia seguinte, Kaio Souza, de 33 anos, foi vítima de uma abordagem violenta da PM em São Paulo. "Foi racismo mesmo", disse em relação ao acontecido. Nas imagens que circulam pelas redes sociais, um policial aparece xingando Kaio de ''lixo", "negão" e conferindo um soco em seu rosto. Kaio foi ao chão depois da agressão.

E não para por aqui: na mesma noite, uma professora foi presa em flagrante na Zona Norte do Rio, por proferir ofensas raciais em um bar a três mulheres. Em 4 de junho, um homem em Campinas (SP), atacou pedras e dirigiu ofensas na sexta-feira a uma mulher e a uma bebê de 1 ano que brincavam em uma área de lazer de um condomínio fechado. Ele chegou a dizer que não colocou "essa m**** dessa criança no mundo".

No dia 10, um gerente de um bar no Rio foi à Polícia registrar crime de injúria contra clientes; também na data, uma modelo negra denunciou nas redes sociais um contratante, após receber um áudio para seleção em uma agência, visando oportunidade de trabalho. Dele, ouviu "Você é perfeita, só que o que você consegue fazer nesse cabelo para ele diminuir um pouco o volume, o tamanho. Você entende minha pergunta? É porque não dá para colocar chapéu nem boné".

Quem ajuda a quantificar os casos através de notícias e relatos é a Rede de Observatório de Segurança Pública, que lista outros quatro casos de racismo até a presente data - e contando.

Um deles é o do instrutor de surfe Matheus Ribeiro, morador do conjunto de favelas da Maré, que foi abordado por Mariana Spinelli e Tomás Oliveira, dois jovens brancos, no Leblon, Rio de Janeiro, acusando-o de furto de uma bicicleta elétrica. A jovem em questão havia tido a sua roubada naquela tarde.

O crime causou revolta na internet. A bike em si foi apreendida pela Polícia, em tempo e espaço recorde, sob cuidados de Igor Pinheiro, mais conhecido como Lorão. O rapaz tem 22 anos, mora em Botafogo e tem 28 passagens pela Polícia e sete prisões. Igor é branco, e possivelmente passaria despercebido pelo casal inquisitório, fruto de uma tática miliciana, pelas palavras de Elio Gaspari, em "O Globo".

Provado o culpado do crime, você pensa que Matheus está ''livre'' do infortúnio acusador? Não. A Polícia, a título de mera ''curiosidade'', dispensou sua energia a fim de investigar a trajetória da bike até as mãos de Matheus. O que se descobriu foi que a bicicleta elétrica em questão havia sido furtada de um empresário, em Ipanema, zona sul, e vendida ao rapaz.

O objeto está sendo periciado por profissionais do Instituto Carlos Éboli (ICCE) e será devolvido ao proprietário. Em depoimento, Matheus disse para os policiais que comprou a bicicleta em um site na internet, em 1º de abril, mas que não possuía a nota fiscal e apresentou uma foto de uma transação financeira e chaves falsificadas com o logotipo de uma marca de motocicleta. Agora a Polícia o investiga por crime de receptação.

Como escrito em texto em recente artigo ao BuzzFeed, essas são formas de regular as experiências negras em vida, quando transformadas de objetos a seres animados, determinando dia após dia, o que podemos ter e fazer. São retratos de um racismo à brasileira, chaga maior de nossa construção civil e social. Ou como disse Frank B. Wilderson, em entrevista à Ana Luiza Albuquerque, na Folha: ''Nós sugerimos que a escravidão é uma dinâmica racial que não terminou. Não importa o que digam no discurso consciente. No inconsciente o corpo negro não é considerado um ser humano, mas um recurso para as pessoas''.