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Eduardo Carvalho

O ofício cercado

Jornalistas que cobrem a entrada do Palácio da Alvorada no "cercadinho" são hostilizados por apoiadores do presidente Bolsonaro - Reprodução
Jornalistas que cobrem a entrada do Palácio da Alvorada no "cercadinho" são hostilizados por apoiadores do presidente Bolsonaro Imagem: Reprodução

16/12/2020 04h00

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"Vocês são podres, podres, inventam mentiras"; "Jornalista de merda", foi o que recebi uma vez de duas senhoras passantes na rua, prestes a entrar "no ar", enquanto repórter de vídeo na CNN Brasil esse ano.

Mas não foi o único caso. Lembro-me do dia em que, montando o equipamento junto da equipe de externa (câmera e operador de som), dois homens apareceram no caminho e desestabilizaram-me durante a entrada ao vivo, aos berros, mesmo com a presença dos companheiros de trabalho.

Era a quinta semana de cobertura da pandemia no Rio de Janeiro, ninguém entendia nada. O impacto era grande aqui e em todo o país. Tentei focar, mas não consegui.

Na volta para redação, ouvi relatos de colegas mulheres que também sofreram intimidações durante a jornada. Só que no caso delas, a situação era mais complexa, visto que são do gênero feminino. Piadas com conotações sexuais, assédio moral e a vulnerabilidade se mostravam mais presentes. Não listarei aqui os comentários de baixo calão que elas ouviram, mas basta pensar em todos os possíveis e existentes no mundo. É nojento.

"Disseram que inventamos os números, que as mortes não existem", é um dos relatos que posso trazer. Noutro lado da mesa, uma colega rapidamente respondeu "Quem dera fôssemos nós, jornalistas, os culpados por tudo isso. Resolveríamos mais rápido do que imaginam".

Só não parou por ali. A sucessão de ódio e violência percebida quando nós, equipe de reportagem, íamos às ruas era gritante.

Fiquei, de certa forma, assustado. Quando descobri-me jornalista, aos cinco anos de idade (sim, uma loucura!) assistindo a edição especial do Jornal Nacional no dia seguinte à morte de Roberto Marinho, não contava com a possibilidade de ser alvo ao contar histórias um dia. Sim, me vejo e apresento esta credencial, um "pontífice" que vai ligando realidades distantes, assuntos que importam, vidas que não devem ser negligenciadas.

Aos 22, tenho medo de falar, numa conversa, que sou jornalista. E esse medo triplica quando estamos só eu e a pessoa em um ambiente. Temo sempre que algo possa acontecer, e não saber reagir às atitudes de desrespeito e até mesmo a probabilidade de agressões físicas, que são institucionalizadas por parte de políticos eleitos em caráter municipal e estadual, e mais do que isso: na figura do Presidente da República Jair Messias Bolsonaro.

No Globoplay, o documentário "Cercados - A Imprensa Contra o Negacionismo na Pandemia'' traz todos os rompantes cometidos pela figura dantesca e residente do Palácio da Alvorada desde 15 de março, data onde foi declarada a pandemia pela Organização Mundial da Saúde. O filme retrata a rotina dos veículos brasileiros na pandemia e de nós, operários da notícia, compilando imagens deste registro histórico gigantesco que atravessará o século.

Mandos, desmandos, a crise no Sistema Único de Saúde, a banalização da vida e a esperança de tempos possíveis para todo um país fazem parte do enredo, justamente por falar de pessoas, humanos. Sensibiliza na dose certa, mostrando a realidade como ela é - ou pelo menos imagina-se.

Me vi representado duplamente, primeiro por ser jornalista, e segundo por ter sido infectado pelo novo coronavírus e ficar 18 dias acamado. Durante o período ''covídico'', só pensava em uma coisa: voltar ao trabalho. A luta é grande para fazer com que a profissão que conecta as pessoas e de extrema importância neste momento não fique restrita a cercadinhos, sob murros, socos, xingamentos e pontapés. Quem usa da violência verbal e física não está preparado para a artilharia pesada que desponta do lápis e caneta de um jornalista. Foram me chamar, eu estou aqui. Sigamos, compañeros.