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Eduardo Carvalho

Como sobreviver no país onde não existe racismo

Alvejantes, detergentes, pinho-sóis e sabão podem ser visto como ativos para ataque - Alice Vergueiro/Estadão Conteúdo
Alvejantes, detergentes, pinho-sóis e sabão podem ser visto como ativos para ataque Imagem: Alice Vergueiro/Estadão Conteúdo

25/11/2020 04h00

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Não grite. Procure manter o nível de sua voz, se possível, abaixo de cinquenta decibéis, o que é recomendado. Na real, não fale.

Também não olhe. Finja mirar a visão em algo, mas não fixe seus olhos por mais de cinco segundos. Podem achar que você está encarando, e terá de abaixar a cabeça, confirmando a desconfiança. Na real, não olhe.

Não leve para a casa resto de materiais de trabalho. Alvejantes, detergentes, pinho-sóis e sabão podem ser visto como ativos para ataque. Também não ande com guarda-chuva, furadeira, tripé de câmera. Se com eles, não faça movimentos bruscos.

Pelo amor de Deus e todos os orixás, não coloque a mão no bolso, não faça isso jamais. Tenha sempre tudo a mão, mas nem tudo. Qualquer objeto poderá ser entendido como possível de ameaça. "É arma!", eles acreditam. Na real, nem brinque.

Não invente de andar com objetos que possam estar em sacolas ou mochilas. Se assim o fizer, tenha a nota fiscal. Sim, a de papel, porque até desbloquear o celular e mostrar a enviada para o e-mail, é o tempo de um murro na cara, soco, pontapés, mata-leão.

Na real, fique atento.

Não escute ou frequente rodas de samba, pagode ou bailes funk. Não assuma que professa religião de origem africana. Não more em favela. Não circule por sua cidade ou estado, isso pode denotar que você ainda não entendeu que há separação de acordo com classe social e gênero. Na real, não se exponha.

Não trabalhe. Não pegue ônibus, metrôs, trens ou motos.

Não vá a mercado com nome francês. Na real, não vá a nenhum. Nem você, nem sua companheira e tampouco seu filho ou filha. Restaurantes, praias ou parques: esqueça, tire da agenda, nunca mais pise.
Não tenha lazer, não consuma cultura.

Não coma, não durma, não respire. Na real, procure não existir.

No país onde o vice-presidente acredita não existir racismo, estas orientações têm endereço certo.