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#DaQuebradaProMundo

OPINIÃO

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Preto é tudo igual?

African Spirits , 2008, releitura de Angela Davis em uma foto icônica - Samuel Fosso
African Spirits , 2008, releitura de Angela Davis em uma foto icônica Imagem: Samuel Fosso

23/07/2021 06h00

Encurralados entre medidas de segurança e o calor intensificado pelo aquecimento global, foi que os dois jovens negros - um brasileiro-colorido-favelado, e um preto-patrício-sul-africano - mergulharam na surpresa do "Musée du quai Branly" (Museu do Quai Branly). Na esquina da Torre Eiffel nos fisgou a atenção uma colagem na entrada principal do museu: "Who is gazing?" (Quem está observando? [ou zé povinhando, no bom pretoguês]). Foi com essa precisa e dolorosa pergunta que a arte de Samuel Fosso escancarou racismo internalizado que habita em mim.

1 - Samuel Fosso - Samuel Fosso
African Spirits, releitura de Martin Luther King Jr em uma foto icônica para o FBI, 2008
Imagem: Samuel Fosso

A exposição "Quem está observando" - que sem sombra de dúvidas foi a melhor exposição que vi em toda minha vida - é dividida em cinco partes: "Estou te encarando?", "Reconhecer-se numa imagem", "As imagens refletem umas nas outras", "Histórias da paisagem" e, por último, "Passagens no tempo". Logo no começo da exposição encontramos com o espetacular trabalho do artista camaronês Samuel Fosso intitulado "SIXSIXSIX", 666 autorretratos brutos. Sem retoques ou maquiagem. Somente um olhar perfurante e a pergunta que ecoa: "quem está observando?"

2 - musée du quai Branly - Jacques Chirac, foto Vincent Mercier - musée du quai Branly - Jacques Chirac, foto Vincent Mercier
Vista da exposição "Quem está observando?"
Imagem: musée du quai Branly - Jacques Chirac, foto Vincent Mercier

Por mais que a exposição e suas cinco áreas sejam precisamente densas e estéticas - que eu recomendo que você procure saber mais sobre - a mensagem que atingiu certeira veio das diversas obras de Samuel, aparecendo entre um ponto e outro. Retratos, em mais de seiscentas maneiras. Retratos, em mais de seiscentos imaginários. Sóbrios, coloridos, fantasiados, desarrumados. Autorretratos.

Desavisado, eu não sabia o que estava prestes a encontrar na exposição do museu, que só disponibilizou o material explicativo em francês. E foi através de um olhar simples, cru e realista que a fotografia de Samuel revelou o racista que habita em mim. Ali estava eu: o jovem negro que foi ensinado a odiar seu próprio cabelo, seu próprio nariz, sua própria cultura. Se sentindo observado, se sentindo tocado, buscando no olhar de Samuel as humanidades que meus olhos reconheciam. Pregadas, como se doessem enquanto se juntavam ao meu ser, as ideias vieram lineares.

"Essas fotos são uma estranha poesia", "É incrível como tudo se parece" "Será que todas essas fotos são da mesma pessoa?" e o pensamento final, cruel e arrebatador: "Parece que preto é tudo igual".

Alexandre Ribeiro, vinte e dois anos. Cabelo Black armado. Crescido em uma favela, rodeado pela cultura hip-hop por influência do pai negro de pele clara e, nos últimos anos de existência, um ser consideravelmente politizado. Mas de onde será que veio esse pensamento? O culpado sou eu, sim, porém é preciso também considerar o monstro silencioso da sociedade brasileira nessa problemática: o racismo estrutural, naturalizado.

Pouco tempo atrás eu enviei uma foto problemática para um grupo de amigos. A foto fazia uma piada entre a semelhança de Kendrick Lamar com o Xande de Pilares. Achei engraçado, e sem ao menos notar a nuância do racismo, enviei. Eles nem se pareciam, na verdade. O que se parecia na minha cabeça era a conexão de que zoar uma pessoa negra por seu cabelo, por sua natureza, era engraçado. Mas será que é engraçado mesmo? De onde vem esse senso de "humor"?

E exatamente pelo choque com o "racista-que-habita-aqui-e-precisa-urgentemente-ser-desconstruído" é que eu me lembro muito bem da lição que o professor, Marcílio Gabriel me deu. Precisamos apreciar a individualidade do homem negro. Essa individualidade que o racismo não considera, que é apagada nos clichês de "ladrão-malandro-bom-de-bola". Não podemos mais simplificar as singularidades humanas em um bordão que vem carregado de preconceitos e histórias apagadas.

Quando eu encarei a imagem de um homem negro (mesmo que inconsciente e confuso se havia visto 666 imagens da mesma pessoa) e uma imensidão de pessoas, de cidadãos, o que eu senti foi um choque. Um choque por não conseguir entender aquilo. Como é possível uma exposição em um museu francês com uma curadoria e artistas negros? Uma exposição onde o negro é o contador e o editor da própria história? Sendo o centro das atenções, mas não como forma de humilhação ou piada? O choque cultural na verdade não foi um choque, mas sim um resultado. O resultado de uma visão de mundo pautada em uma educação racista e pigmentadamente estruturada.

E é exatamente em busca de uma sociedade acolhedora e em evolução que precisamos beber das fontes como a da arte de Samuel Fosso. Do pensamento da filósofa Djamila Ribeiro, da teoria do "pretoguês" da intelectual Lélia Gonzalez, da obra "Racismo Estrutural" do professor Silvio Almeida.

A obra de Samuel nos responde escuramente - ou claramente se preferir - que não, preto não é tudo igual. A pluralidade e a beleza dos povos habitam na individualidade e na celebração de nossas características individuais, que no final do dia, é que nos conecta e nos permite ser parte de um grupo. No final, a mesma pergunta que ainda me instiga é a que eu adiciono minhas palavras e devolvo ao leitor: "e o racismo internalizado em você, quem está observando?