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#DaQuebradaProMundo

OPINIÃO

Texto em que o autor apresenta e defende suas ideias e opiniões, a partir da interpretação de fatos e dados.

Por que sou medido sempre onde chego? Respondendo o Kyan

Mc Kyan  - Reprodução/Instagram
Mc Kyan Imagem: Reprodução/Instagram

14/05/2021 06h00

Nessa sexta-feira o texto da coluna #DaQuebradaProMundo está diretamente relacionado à música "Eu vim de lá", que o artista Kyan gravou para o perfil da Pineapple. Caso você não conheça, vale a pena dar uma escutada para entender a ideia que eu gostaria de passar.

Que eu vim de lá da favela
Cotidiano complicado
Nasci e cresci vendo roubo e guerra
O certo agindo no errado

Assim como os versos que abrem a música do MC, eu também gostaria de abrir os caminhos falando um pouco do meu corre. O autor dessa coluna também veio de lá! Sou cria da Favela da Torre, de Diadema, e graças ao amor da minha coroa e muito corre, muito estudo, cheguei aqui na cidade de Berlim para estudar numa faculdade alemã/americana. Assim como o Kyan, não estou sozinho. Estamos correndo para inspirar muitos e muitas que nem nós, para que o pódio transforme a sociedade e esteja cheio dos nossos. E isso é #DaQuebradaProMundo.

E na escola nem o mais estudado
Conseguiu explicar o porquê do racismo

Logo em seguida os versos do Kyan já trazem uma dura realidade: o racismo não respeita sua idade para te atacar, mas requer muita maturidade e conhecimento para ser bem compreendido. E, infelizmente, no nosso país temos muitas pessoas que opinam no assunto sem o mínimo de propriedade, de estudo, como se o tema fosse simplesmente uma opinião. Racismo não é opinião, o racismo é a estrutura de sociedades no mundo todo. E eu te explico.

Mas, senhor, por que tá me batendo?
Mas, senhora, por que tá escondendo?
Alguém me explica, eu não tô entendendo
Por que sou medido sempre onde chego?
Por que tão rindo do meu cabelo?
Por que a branquinha me olha estranho?
Por que ela acha que preto é feio?
Oh, mãezinha, por que que eu não nasci branco?

No meu lugar no mundo é impossível falar da questão racial sem levantar dois pontos: o privilégio e o colorismo. O meu privilégio foi que eu vivi a minha infância inteira achando que eu era branco, mesmo sendo filho de um pai preto de pele clara e uma mãe branca. O meu privilégio de ter a pele mais clara não me fez sofrer piadas racistas na escola, mas me fez ser a pessoa que fazia as piadas contra meus amigos da pele mais escura.

Porém o colorismo - a ideia de que de pretos e pardos fazem parte do grupo "negro" nos censos e políticas públicas brasileiras, entretanto são tratados diferentemente com base na tonalidade de sua pele - se apresentou na minha adolescência quando eu comecei a questionar o motivo de sonhar em ter o cabelo liso quando era moleque. O colorismo se apresentou quando comecei a tomar enquadros da polícia depois de deixar o meu cabelo Black crescer.

E como isso foi com você? Tenho certeza que ao depender da cor da sua pele, dos seus traços, a resposta será muito diferente. E são exatamente essas perguntas que o Kyan faz que levantam o tema do privilégio e do colorismo. Hoje em dia com 22 anos de idade as pessoas me veem como "pardo", e por conta de uma pele evidentemente mais clara do que a pele negra retinta, eu nunca me perguntei como o Kyan "por que que eu não nasci branco"?. É imprescindível reconhecer o nosso lugar no mundo para podermos ter empatia e alteridade com o próximo.

Mas aí, professora, hoje estourei e cheguei aqui em cima
E chegando aqui, encontrei menos preto
E muito mais branco do que eu gostaria
Professora, me explica por que só tem branco no espaço de pessoa rica?
Por que branco é o cara que grava?
Por que é o branco quem me entrevista?
Por que é o branco quem me contrata?
Por que é o branco quem administra?
Por que o rap é cultura de preto e o branco que fala e a moda dita?
E por que normalmente o cara preto serve e o cara branco é quem manda?
E por que que meu papo é pra preto e as balada que canto só tem gente branca?
Mas se o preto e o branco é igual
E mais da metade do Brasil é preto
Por que no jantar com mais de 20 ricos, de todos os ricos sou o único preto?
É, sou o único preto

"Mimimi" do Kyan? Muito pelo contrário! Como explica muito bem o mestre Silvio Almeida, o racismo é estrutural e define as relações de poder em todas as esferas da nossa sociedade. Por exemplo: segundo o Atlas da Violência, "em 2018, os negros (soma de pretos e pardos, segundo classificação do IBGE) representaram 75,7% das vítimas de homicídios. Comparativamente, entre os não negros (soma de brancos, amarelos e indígenas) a taxa foi de 13,9, o que significa que, para cada indivíduo não negro morto em 2018, 2,7 negros foram mortos." Enquanto isso, do outro lado da sociedade o contraste fica mais evidente. Uma pesquisa do Instituto Ethos mostrou que os negros ocupam apenas 4,9% das cadeiras nos Conselhos de Administração das 500 empresas de maior faturamento do Brasil. E aí, menor? Será que isso favorece a presença de mais negros nos jantares ricos?

Ó, menor, me escuta
Que eu tô na luta pra não ser bandido
Investe seu tempo no seu talento

Pra erguer a família e tá sendo servido

Finalizando o som Kyan traz essa ideia, que, ao meu ver, é um pouco problemática. Será que para um negro vencer o outro tem que perder? Não podemos pensar em uma sociedade onde a abundância é disponível para todos e acabamos com a relação de quem serve e quem está sendo servido? A vitória coletiva é nosso foco.

Existe uma noção que eu gosto muito: se você precisa do dinheiro do seu trabalho para continuar vivendo você não é rico. Rico são os bilionários que vivem de renda, os herdeiros que nasceram sem precisar trabalhar. Por mais que a gente goste de se iludir, acreditar na ilusão de por ganhar dez mil reais por mês que somos capazes de realizar tudo o que queremos, as pessoas que detém o poder e ditam essas questões raciais pelo mundo todo são pessoas que já nasceram detentoras de bilhões. E são elas que controlam as dinâmicas sociais do mundo, e são contra elas que nós precisamos lutar.

A única coisa que eu mudaria nessa letra é esse discurso da opressão, uma ideia de que é melhor que você esteja no topo enquanto ainda um irmão preto e pobre estará te servindo. Não presta pra nada um sistema onde a opressão só se inverte, e é por isso que devemos lutar por mudanças radicais em nossas sociedades. Lutar contra os boy. Mas não os boy que ganham dez mil por mês, mas sim os boy que dominam o mundo com suas grandes empresas e sociedades.