Floresta em pé é questão de saúde pública para evitar mortes por calor

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Quem nunca perdeu o sono numa noite abafada, sentiu o corpo exausto ou ficou irritado sem saber se era o calor? À primeira vista, pode parecer apenas um desconforto normal, parte da rotina nos dias mais quentes. Na realidade, o calor pode agravar doenças pré-existentes, aumentar a procura por serviços de saúde e, em situações graves, levar à morte.
Essa experiência está se tornando cada vez mais comum. Entre 1970 e 2020, o número de eventos de calor aumentou em várias capitais brasileiras, com destaque para região Norte. Mesmo em 2025, as previsões de temperaturas extremas ainda evocam os recordes de 2023 e 2024, quando a sensação era de um calor persistente. Na Amazônia, as temperaturas máximas de 2024 registraram recordes e ficaram 5,1°C acima da média climatológica de 1991-2020. Nesse cenário, somam-se fatores ambientais como o avanço do desmatamento, as secas prolongadas e a poluição das queimadas, que ampliam os riscos à saúde da população.
Durante ondas de calor intenso, o organismo tenta se adaptar: transpira, dilata os vasos, acelera a respiração. Mas, quando o calor persiste, esses mecanismos podem se tornar insuficientes. O coração trabalha mais, a desidratação aumenta e a respiração fica mais difícil. Quando as temperaturas ultrapassam 35°C, a umidade baixa acelera a perda de água corporal, enquanto a alta impede a evaporação e dificulta o resfriamento. Nessas condições, o organismo pode perder a capacidade de se resfriar em poucas horas, o que explica por que grupos como idosos, crianças menores de cinco anos e pessoas com doenças crônicas são os mais afetados. Esses processos também ajudam a entender por que muitas mortes relacionadas ao calor são registradas de forma indireta, sobretudo por causas cardiovasculares e respiratórias. Na prática, isso faz com que a real dimensão do problema permaneça invisível nas estatísticas oficiais.
O aumento do calor não se explica apenas pelas mudanças climáticas globais, mas também pelo impacto de fatores locais, como o desmatamento. Um estudo recente publicado na revista Nature Climate Change mostrou que, entre 2001 e 2020, a perda de floresta em regiões tropicais elevou as temperaturas nas áreas desmatadas e esteve associada a cerca de 28 mil mortes anuais por causas não acidentais. São mortes consideradas evitáveis, induzidas pelo desmatamento. Se a floresta tivesse sido preservada, esse excesso de calor e suas consequências poderiam ter sido evitados.
No Brasil, estima-se que 21,6 milhões de pessoas foram expostas ao aquecimento causado pelo desmatamento no mesmo período. Cerca de 38% das mortes atribuídas ao calor no país estão ligadas a esse aumento de temperatura. Isso mostra que a perda da floresta não afeta apenas o clima em escala global, mas tem impactos diretos e mensuráveis na saúde. A situação é mais grave porque boa parte da devastação ocorre em áreas historicamente vulneráveis, com baixa capacidade de adaptação. Comunidades tradicionais, de baixa renda e pequenos agricultores que vivem próximos a regiões desmatadas estão entre as pessoas mais atingidas e possuem acesso limitado à saúde e poucos recursos para lidar com o calor crescente.
Mesmo que as comunidades vulneráveis sintam os impactos de forma mais intensa, a responsabilidade por esse agravamento está longe de ser equilibrada. Os 10% mais ricos do planeta respondem por cerca de dois terços do aquecimento global desde 1990, impulsionados por padrões de consumo e investimentos de alto impacto ambiental. Enquanto isso, as populações mais pobres, especialmente nas regiões tropicais, enfrentam os efeitos mais severos do calor e da perda de florestas.
A mensagem é inequívoca. O desmatamento intensifica o calor, aumenta as mortes e compromete os serviços que as florestas oferecem para além da regulação climática, como água, alimentos e meios de subsistência. Essa exposição amplia desigualdades e coloca em risco justamente as populações com menor capacidade de se proteger.
Para o setor da saúde, o desafio é ainda mais complexo, pois vai além das fronteiras do próprio sistema e exige articulação com outras áreas. É urgente reduzir a exposição com ações firmes para frear o desmatamento e fortalecer a capacidade adaptativa, diminuindo vulnerabilidades sociais e regionais que tornam milhões de brasileiros mais sensíveis ao calor. No Brasil, as desigualdades persistentes e a sobreposição de doenças infecciosas e crônicas tornam essa tarefa ainda mais urgente. Reduzir o desmatamento, portanto, não é apenas uma pauta ambiental, mas uma política de saúde pública capaz de reduzir riscos e criar condições mais seguras para as próximas gerações.
*Beatriz Fátima Alves de Oliveira é pesquisadora em Saúde Pública da Fiocruz. Ela é mestre e doutora em Saúde Pública e Meio Ambiente pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fundação Oswaldo Cruz.





























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