Rios voadores explicam por que desmatar Amazônia ameaça chuvas no Brasil

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Há algumas décadas surgiu o termo "rios voadores". E muita gente se pergunta: "Como pode existir isso?" O conceito é diferente dos rios visíveis na superfície, pois está relacionado ao transporte de vapor d'água pela atmosfera e à existência da Floresta Amazônica. Os rios voadores são enormes corredores de vapor transportados pelos ventos —invisíveis, mas capazes de carregar a umidade que vem tanto do oceano Atlântico Tropical, quanto do vapor liberado pela evapotranspiração da floresta, processo em que a vegetação libera grandes quantidades de vapor d'água para a atmosfera.
Como funciona? O processo começa com os ventos alísios, que sopram do Atlântico em direção à costa norte da América do Sul, carregando umidade. Ao avançar pelo continente, essa umidade possibilita a formação de nuvens e chuva sobre a floresta. A própria Amazônia também bombeia grande quantidade de vapor para a atmosfera pela evapotranspiração: uma única árvore pode liberar de 300 a 500 litros de água por dia em forma de vapor. Cerca de 50% desse volume contribui para as chuvas sobre a própria floresta — a chamada reciclagem da evapotranspiração. Os outros 50% seguem para outras regiões da América do Sul.
Esse vapor é transportado para oeste e sudoeste pelos ventos alísios até encontrar a Cordilheira dos Andes. Nesse ponto, parte precipita nas encostas a leste da cadeia de montanhas, formando as cabeceiras dos rios amazônicos -nessa região, a chuva média anual é em torno de 3.000 milímetros, ou seja, três mil litros de água por metro quadrado por ano. No entanto, a alta cordilheira tem uma curvatura que permite que o vento que está transportando enormes quantidades de vapor d'água (os rios voadores) seja desviado em direção ao sul. Assim, os rios voadores transportam umidade da bacia Amazônica para o Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, além de outros países da América do Sul. No caminho, o excesso de chuvas forma áreas alagadas, como o Pantanal no Brasil e o Chaco em países vizinhos.
Mesmo na estação seca, a floresta mantém alto nível de reciclagem de água, o que ajuda a manter a umidade da atmosfera, do solo, reduzir a duração da seca e aumentar a chuva. Essa umidade é vital para a saúde da floresta e para prevenir incêndios. A existência dos rios voadores mostra a importância da Amazônia não apenas para o Brasil, mas para o clima de todo o continente.
Os rios voadores são fundamentais para o ciclo hidrológico em praticamente toda a América do Sul. No verão, cerca de 30% da umidade que chega ao estado de São Paulo vem da Amazônia, garantindo grande volume de chuvas. Infelizmente, esse processo vital está ameaçado pelo aquecimento global e o desmatamento, que podem alterar o transporte de vapor para a atmosfera, comprometendo o fluxo dos rios voadores.
Estudos realizados nos últimos 40 anos mostram a forte interação entre vegetação e atmosfera na Amazônia. O desmatamento reduz a precipitação e a evapotranspiração, aumenta a temperatura e prolonga o período seco. Essa degradação é agravada por distúrbios como fogo, extração de madeira e efeitos de borda, que são quando a floresta fica exposta à ação do vento e à maior entrada de radiação solar, promovendo o aumento de temperatura, que seca a vegetação e aumenta o risco de incêndios. Esta série de efeitos negativos causa a mortalidade de árvores, além de contribuir para aumentar o aquecimento global.
Vários desses estudos indicaram que houve uma diminuição da evapotranspiração na Amazônia em virtude da mudança de cobertura do solo para agricultura ou pastagem. Um estudo de setembro de 2025 publicado na revista "Nature Communications" mostrou mais uma vez quão sério é o problema: nos últimos 35 anos, o desmatamento foi responsável por cerca de 74% da redução de 20% a 30% das chuvas na estação seca do sul e sudoeste da Amazônia. Isso evidencia que, embora as emissões globais de gases de efeito estufa sejam o principal motor do aquecimento global, o desmatamento tem efeito crítico no clima regional. A diminuição da evapotranspiração reduz a capacidade da floresta de bombear água para a atmosfera e, em um ciclo vicioso, a menor quantidade de chuva reduz ainda mais a disponibilidade de água para esse processo. O resultado é uma atmosfera cada vez mais seca sobre a região, com impactos diretos no regime de chuvas, na produção agrícola, na geração de energia, no abastecimento de água e na biodiversidade, cujo risco de perda pode ser irreversível.
O aquecimento global tem contribuído para o aumento da ocorrência de extremos climáticos e de eventos intensos, como ondas de calor, secas, veranicos, tempestades severas, inundações, etc. Embora secas e inundações façam parte da variabilidade climática natural na Amazônia, os eventos extremos de secas e inundações ocorridos nas últimas duas décadas foram incomuns e podem ter implicações de longo prazo. Projeta-se que o aquecimento global aumentará a frequência e até mesmo a intensidade desses eventos extremos, e a associação sinérgica entre secas severas, ondas de calor, desmatamento e incêndios pode ser altamente prejudicial à Floresta Amazônica.
É por isso que garantir a preservação da Amazônia é crucial não só para o meio ambiente, mas para a segurança hídrica e a economia de todo o continente sul-americano.
*Gilvan Sampaio é doutor e mestre em Meteorologia pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), onde atua como pesquisador





























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