Amazônia pede industrialização sustentável, não só extrativismo verde

Ler resumo da notícia
Muitas das soluções hoje propostas para a valorização da biodiversidade amazônica ainda operam dentro de uma lógica limitada: a da comoditização. Ou seja, mesmo com boas intenções de promover cadeias produtivas sustentáveis, grande parte das iniciativas continua focada na produção de matéria-prima com baixo valor agregado — como frutos e sementes de açaí, cacau e murumuru, entre vários outros.
Esse tipo de abordagem carrega riscos relevantes. O primeiro é a simples substituição de commodities exógenas, como gado, soja e dendê, por commodities regionais. Embora essa substituição possa aparentar uma transição ecológica, ela muitas vezes mantém a mesma lógica predatória, sem transformar estruturalmente as relações de produção. Além disso, mesmo as monoculturas de espécies nativas da Amazônia estão susceptíveis à queda de produtividade devido à redução da variedade e quantidade de polinizadores causada pelo desmatamento e simplificação ecológica.
O segundo risco é a continuidade de um modelo de produção de baixa intensidade tecnológica. A Amazônia permanece, assim, posicionada apenas como fornecedora de matérias-primas brutas, facilmente substituíveis por outros mercados ou por inovações fora da região. Foi o que ocorreu, por exemplo, com a produção de borracha no início do século 20: uma explosão inicial de demanda, seguida por um colapso quando os sistemas silviculturais de seringueiras (Hevea brasiliensis) foram implantados pelos ingleses na Ásia.
O terceiro risco é a fragilidade dos sistemas extrativistas e agroflorestais em relação às mudanças climáticas e ao desmatamento e degradação da floresta. Em relação às variações climáticas, espécies como açaí e castanha, por exemplo, são altamente influenciadas pelo aumento de temperatura, reduzindo sua produtividade nos anos mais quentes e nos anos posteriores aos recordes de temperatura. Desde 1950, estudos têm mostrado que à medida que o desmatamento aumenta, a produção de frutos e sementes é reduzida.
Nos estudos que tenho feito desde 2017, tenho constatado com meus colegas que cerca de 90% dos municípios amazônicos no Brasil não possuem tecnologia e infraestrutura para o processamento dos produtos da biodiversidade. Isso significa que, na maioria dos municípios amazônicos, os povos e comunidades que dependem da floresta para sua subsistência econômica somente possuem os atravessadores como alternativas para comercializar seus produtos. Portanto, sem acesso a tecnologias e sem uma organização social forte, muitas comunidades continuam reféns de atravessadores.
Valorizar a biodiversidade não pode ser sinônimo de reduzi-la à matéria-prima. É preciso fomentar a inovação que permita agregar valor de forma local. A floresta tem muito mais a oferecer do que produtos primários, frutos, sementes e óleos naturais. Mas para isso, é necessário romper com o pensamento baseado em commodities e implementar soluções baseadas em ciência e tecnologia.
Exemplos de tecnologias aplicadas à biodiversidade para gerar produtos industrializados de alto valor agregado
Já apresentei aqui argumentos sobre o potencial da ciência e tecnologia aplicadas aos produtos da biodiversidade como motor para o surgimento de uma sociedade predominantemente de classe média na Amazônia. No entanto, destaquei que esse progresso dependerá da erradicação do desmatamento e da degradação florestal, além do uso inteligente e sustentável da biodiversidade. Agora, apresento três exemplos de como a bioindustrialização pode acontecer por meio da criação de centros de ciência, tecnologia e inovação voltados aos povos amazônicos e às espécies nativas da região.
O primeiro exemplo é o investimento no desenvolvimento de um centro de produção de proteína a partir da castanha-do-pará (Bertholletia excelsa). Estudos mostram que essa castanha contém cerca de 20% de proteína — uma concentração cinco vezes superior à do leite e equivalente à da carne. Diferente das proteínas de origem animal, a proteína da castanha-do-pará pode ser preparada para atender a consumidores veganos. Além disso, é possível criar suplemento alimentar proteico de castanha-do-pará em pó, comparável ao whey protein (proteína do soro) do leite, para atletas e esportistas.
O segundo exemplo é a criação de centros de ciência, tecnologia e inovação para a fabricação de capas protetoras de equipamentos eletrônicos, utilizando borracha natural extraída da seringueira. A borracha natural possui, de fato, propriedades físico-químicas superiores às da borracha sintética em diversas aplicações, como maior elasticidade, melhor aderência a superfícies e biodegradabilidade. Com isso, é possível produzir capas sustentáveis e de alta qualidade para celulares, tablets, laptops, GPS, videogames, HDs externos e outros dispositivos que demandam proteção e durabilidade.
Finalmente, outro campo promissor é a biodiversidade presente no solo da Amazônia. O solo das florestas saudáveis é rico em microrganismos que auxiliam a produtividade ecossistêmica. Esses microrganismos podem ser manejados em centros de ciência, tecnologia e inovação para produzir soluções que melhorem a qualidade dos solos em sistemas agrícolas e florestais, contribuindo também para projetos de restauração florestal na região.
Portanto, esses três exemplos demonstram como é possível transformar matérias-primas regionais em produtos industrializados de maior valor, com potencial para gerar emprego e renda localmente, fortalecendo as sociobioeconomias de saudáveis florestas em pé e rios fluindo na Amazônia.
Deixe seu comentário
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Leia as Regras de Uso do UOL.