Justiça climática começa por saber quem são os mais afetados

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A constituição da ciência do clima no Brasil sempre esteve estruturada sobre o alicerce de produção e análise de dados como emissões e captura de gases de efeito estufa, modelagem climática, segurança energética e alimentar, pontos de não retorno da Amazônia, do Cerrado, do Pantanal e da Caatinga e desastres associados a ondas de calor, secas, incêndios da vegetação e chuvas extremas. Esses dados são componentes-chave na geração de conhecimentos científicos de ponta que influenciam em processos de tomada de decisão nacional e internacional. Porém, dados qualitativos são necessários para entendermos melhor os efeitos das mudanças climáticas.
A ciência do clima reconhece que atividades humanas têm acelerado e intensificado as mudanças ambientais e climáticas em escala global. Esse processo agrava a frequência e a intensidade de fenômenos naturais extremos, amplia riscos e desencadeia desastres em larga escala. Os impactos, no entanto, não são homogêneos: variam de acordo com a região, o tipo de evento e, sobretudo, com as condições sociais pré-existentes. Populações que já enfrentam vulnerabilidades no cotidiano são desproporcionalmente afetadas, o que aprofunda desigualdades socioeconômicas em escala nacional e internacional.
Mas quem são os que estão em maior risco? Os mais afetados ou as mais afetadas? Quais são os fatores geradores de injustiça climática? Quais são os espaços de tomada de decisão para interromper o impacto diferenciado?
Aqui identificamos dois importantes processos, dos quais a ciência de dados é elemento-chave: conhecer e reconhecer.
A coleta, análise e disponibilidade de dados quantitativos desagregados por gênero, raça, idade e nível educacional é o primeiro grande desafio para compreender quais grupos estão sob maior risco e são mais afetados. A ausência de dados interseccionais, aliada à escassez de ferramentas e mecanismos padronizados para sua coleta e análise em larga escala, com volume e frequência adequados, compromete a precisão das decisões. Isso fragiliza a formulação de políticas eficazes e dificulta a redução dos impactos sobre os grupos mais vulnerabilizados.
Até aqui temos apenas dados numéricos: categorias, quantidade e qualidade dos números. Mas os impactos das mudanças climáticas não são somente números. São populações, histórias, realidades, vulnerabilidades, desafios, assim como capacidades e conquistas no processo de adaptação ao incremento de frequência e intensidade dos eventos extremos climáticos.
E é a partir desse princípio que a ciência de dados propõe o levantamento e uso de dados qualitativos não numéricos que permitem descrever e interpretar fenômenos a fim de compreender dimensões e estruturas, explícitas ou implícitas, de como e por que populações são afetadas diferentemente pelas mudanças ambientais globais e mudanças climáticas.
A produção de dados qualitativos e quantitativos de populações afetadas em seus territórios, desagregados por gênero, raça, idade, nível educacional, deficiência, e analisados interseccionalmente, vai além de geração de conhecimento, remove barreiras estruturais para o reconhecimento. Reconhecimento de desigualdades históricas, condicionantes locais, necessidades específicas, capacidades diferenciadas e protagonismo dos diferentes grupos no território para lidar com as ameaças e impactos.
O conhecimento e reconhecimento de realidades desiguais e capacidades diferenciadas frente à crise climática viabiliza financiamento direcionado e contínuo voltado às populações que vivem no território para suprir diferentes necessidades, fortalecimento de ações locais e abertura de espaços de fala e presença em processos de tomada de decisão na agenda climática local, nacional e internacional.
Atualmente a ciência brasileira vem avançando na produção de conhecimento científico, permitindo identificar os principais vetores regionais das mudanças climáticas e ambientais, bem como os atores envolvidos nesses processos. Também fornece registros detalhados sobre o aumento da frequência e intensidade dos eventos extremos e seus impactos, incluindo o número de pessoas afetadas ou mortas, além dos desafios enfrentados pelos sistemas sociais - especialmente por aqueles que já vivem em situação de vulnerabilidade. No entanto, ainda há lacunas importantes a serem compreendidas: quem são as vítimas fatais dos desastres no Brasil, quais são suas características, são as desigualdades de gênero e raça fatores geradores de maior impacto? Quais capacidades são mobilizadas nas respostas e sobrevivência a desastres, e como devem ser potencializadas?
A COP30 será um evento significativo em que líderes mundiais, cientistas, organizações e representantes da sociedade civil se reunirão para discutir políticas ambientais globais e ações de combate à emergência climática que o planeta está enfrentando, com foco significativo na região amazônica, que desempenha um papel vital na regulação do clima global, na manutenção da biodiversidade e no modo de vida dos povos Indígenas, quilombolas e ribeirinhos.
O reconhecimento de papéis, legitimidade de fala, presença e representatividade de vozes do território no centro da agenda climática global é chave aos formuladores de políticas para tomada de decisões informadas e justas, levando, em última análise, a uma ação climática mais eficaz e equitativa, aqui e agora, em Belém na COP30.
*Gabriela Couto é doutora em Ciência do Sistema Terrestre pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), mestre em Ciência Ambiental pelo Procam (Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental) da USP (Universidade de São Paulo). Possui bacharelado e licenciatura em Ciências Biológicas pela USP. Pesquisa e atua na área socioambiental com foco em mudanças ambientais globais, desastres, gênero, papel de atores sociais, educação, e é autora e cocriadora do projeto Sobrevidas, além de coautora projeto Gaia em Jogo.
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